A PEC do semipresidencialismo é inconstitucional   Migalhas
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A PEC do semipresidencialismo é inconstitucional – Migalhas

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Apresentei no Migalhas1, em 15/4/22, minha posição de que o semipresidencialismo é inconstitucional e, em consequência, de que a proposta de emenda constitucional em estudo na Câmara dos Deputados não poderia sequer tramitar.

Agora, volto ao tema porque a PEC 2/25 que propõe o semipresidencialismo foi protocolizada na Câmara dos Deputados, no dia 6 de fevereiro, com 179 assinaturas.

O ponto principal da proposta de emenda constitucional é que o presidente da república resta como chefe de estado, sendo criado o cargo de primeiro-ministro que será o chefe de governo.

Ao examinar a PEC 2/25 mantenho a posição que defendi em 2022: semipresidencialismo é inconstitucional no Brasil.

Não vou reproduzir todo aquele texto, mas apenas seus argumentos fundamentais.

Além de estabelecer exigências formais, a assembleia constituinte de 1987-1988 também fixou limites materiais para as emendas constitucionais, excluindo do poder reformador a possibilidade de emendar a constituição em certas matérias: a forma federativa de estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos poderes; e os direitos e garantias individuais. Estas são denominadas cláusulas pétreas.

Não estando o presidencialismo, regime de governo, previsto no art. 60 da constituição, como defender que estaria petrificado, excluído do poder constituinte derivado de o alterar por meio de emenda constitucional?

Defendi e o reitero agora que o presidencialismo é cláusula pétrea implícita, porque a assembleia constituinte submeteu-o a consulta direto do povo, por meio de plebiscito, no dia 21 de abril de 1993.

A assembleia constituinte poderia não ter feito isso, poderia não ter chamado o povo a deliberar sobre a república e o presidencialismo, até porque era detentora do poder constituinte originário e não chamou o povo para deliberar sobre tudo o mais da Constituição, atuando em seu nome, através da democracia representativa. Mas preferiu chamar o povo para deliberar sobre esses dois temas, exclusivamente.

Tendo o povo se manifestado de maneira majoritária, em 21 de abril de 1993, a favor do presidencialismo (e da república), pode ele ser alvo de emenda constitucional a fim de implantar o parlamentarismo?

Inicialmente, abrem-se três hipótese interpretativas: 1 – sim, pode haver emenda constitucional, porque não há cláusula pétrea expressa no artigo 60, §4º, da Constituição federal; 2 – sim, pode haver emenda constitucional, porque não há cláusula pétrea expressa no art. 60, §4º, da Constituição federal, mas desde que referendada pelo povo, através de consulta direta, tal qual foi feito em 21 de abril de 1993, repetindo a regra do art.2º do ato das disposições constitucionais transitórias; ou 3 – não é possível porque haveria uma cláusula pétrea implícita.

Filio-me como já externei à terceira corrente porque é preciso dar consequência jurídica à vontade da assembleia nacional constituinte no pleno exercício do poder constituinte originário. É relevante que aquela ordem para a consulta popular esteja situada no ato das disposições constitucionais provisórias e não no corpo permanente da constituição, inclusive com data marcada. Disso resulta que a opção pelo presidencialismo não é algo que se possa consultar o povo, sempre que a maioria congressual assim o entender conveniente. Fazê-lo não seria apenas inconstitucional, mas sim de uma inconstitucionalidade qualificada por ofensa direta à vontade manifestada pelo poder constituinte originário.

Ademais o presidencialismo não está expresso como cláusulas pétrea, no art. 60, §4º, da Constituição, porque seria manifestamente contraditório petrificá-lo e, ao mesmo, tempo, remetê-lo à consulta popular. Mas o procedimento único adotado pela assembleia constituinte com deliberação sua submetida ao voto direto do povo, tornou-o implicitamente imutável, compondo uma das cláusulas pétreas.

Pode-se argumentar que não se está propondo parlamentarismo, mas sim semipresidencialismo, ou seja, que não se está extinguindo o presidencialismo. Contra esse argumento, contraponho que no mundo do direito a natureza jurídica dos conceitos não se determina pela denominação, mas sim por suas características determinantes, adotadas pelo texto normativo.

Se está vedada emenda constitucional que extinga o presidencialismo, também está vedada reforma constitucional que o desnature sem o extinguir.

É dizer, se a emenda constitucional retirar do texto constitucional elementos essenciais do presidencialismo, será ela inconstitucional e sequer poderá tramitar. Vejamos, então.

A Constituição de 1988 garante a independência e a harmonia entre três poderes: o legislativo, o executivo e o judiciário (art.2º da CF) e essa separação é cláusula pétrea expressa (art.60, §4º da CF). Ao organizar esses poderes, a Constituição estabelece que o poder legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (art.44 da CF), e lhes atribui competências (artigos 48, 51 e 52). Fixa igualmente que o poder executivo é exercido pelo presidente da república, auxiliado pelos ministros de estado (art.76 da CF), e que são órgãos do poder judiciário os órgãos que especifica, entre os quais, o STF, o CNJ, o STJ, o TST, os tribunais regionais federais e os juízes federais, os tribunais e juízes do trabalho, os tribunais e juízes eleitorais, os tribunais e juízes militares e os tribunais e juízes dos estados e do distrito federal (art.92).

O cargo de presidente da república será exercido por brasileiro nato (art.12, §3º, I da CF), eleito juntamente com o vice-presidente, pelo voto direto dos eleitores brasileiros (art.77 da CF) para mandato de quatro anos (art.82 da CF).

As atribuições do presidente da república estão elencadas, de forma ampla, no art.84 da Constituição que possui nada menos que vinte e oito incisos, inclusive um com cláusula aberta que reenvia para outras atribuições previstas na constituição (inciso XXVII), e vão, desde a nomeação e exoneração de ministros de estado e o exercício da direção superior da administração federal, inclusive exercer o comando supremo das forças armadas, até manter relações com estados estrangeiros, passando por competências no processo legislativo (iniciativa de leis, sancionar, promulgar e publicar as leis, vetar projetos de lei, editar medidas provisórias), e, ainda, decretar o estado de defesa, o estado de sítio, o estado de calamidade e a intervenção federal. Vale a pena a leitura de todos, que não vão aqui transcritos apenas por economia.

Nesse extenso rol, encontram-se funções de estado, que no parlamentarismo são exercidas pelo chefe de estado, – manter relações com estados estrangeiros e celebrar tratados, por exemplo, – e funções de governo, exercitáveis pelo chefe de governo, como é o caso de dirigir a administração pública, incluindo a gestão dos serviços, dos bens e dos servidores públicos.

No presidencialismo brasileiro, portanto, as funções de chefe de estado e aquelas de chefe de governo são exercidas, todas elas, pelo presidente da república, e apenas as previstas nos incisos VI, XII e XXV podem ser delegadas (dispor mediante decreto da organização e funcionamento da administração federal e extinção de funções ou cargos vagos; conceder indulto e comutar penas; e prover e extinguir os cargos públicos federais), ou seja, por ordem expressa da Constituição, todas as outras funções são indelegáveis, tal sua importância no exercício do cargo de presidente da república.

A esse grande poder, a Constituição corresponde a atribuição de grandes deveres, cujo descumprimento gera crimes de responsabilidade (art.85 da CF).

Muitas daquelas atribuições ao presidente da república, previstas no art.84 da Constituição, não parecem ser essenciais nem à chefia do estado, nem à chefia do governo, a exemplo da competência para conferir condecorações e distinções honoríficas (inciso XXI), mas o fato relevante é que foram todas fixadas pela assembleia nacional constituinte, à exceção do poder de decretar estado de calamidade pública, incluído pela emenda constitucional 109, de 2021 (inciso XXVIII) e duas sofreram alteração de redação: incisos VI e XIII , através da emenda constitucional 32, de 2001.

Assim, o texto constitucional nos aponta de maneira expressa e analítica o que significa o presidencialismo no Brasil. Retirar uma ou outra dessas atribuições do presidente da república, pode até ser mais conveniente para este ou aquele momento do nosso país, mas não tenho dúvida que significará uma ofensa à vontade constituinte originária, referendada pela vontade do povo em consulta direta.

Na PEC 2/25, perde o presidente da república para o primeiro-ministro as seguintes competências: a.1.) a direção superior da administração federal, incluindo sua organização e funcionamento com provimento e extinção de funções ou cargos públicos; a.2.) o envio ao Congresso Nacional o plano plurianual, o projeto de lei de diretrizes orçamentárias e as propostas de orçamento previstos nesta Constituição; a.3.) a prestação anual de contas ao Congresso Nacional; a.4.) a nomeação da maioria dos membros do Conselho da República pois indicará apenas dois; a.5.) a nomeação e exoneração de ministros de estado continua com o presidente da república, mas sob proposta do primeiro-ministro; a.6.) a decretação de  estado de defesa, passa  a depender de solicitação do primeiro-ministro, ouvidos os Conselhos da República e da Defesa, submetendo-o ao Congresso Nacional; a.7.) a solicitação de estado de sítio ao Congresso Nacional que passa a ser competente para decretá-lo, ouvidos os Conselhos da República e da Defesa

Recebe o presidente da república as seguintes competências novas: a) nomear o primeiro-ministro, após consulta aos partidos políticos que compõem a maioria da Câmara dos Deputados; b) convocar extraordinariamente o Congresso Nacional; c) dissolver a Câmara dos Deputados, na hipótese de grave crise política e institucional, ouvido o Conselho da República e o Conselho de Defesa, e convocar eleições extraordinárias em sessenta dias; d) exercer a direção da política de guerra e as escolhas dos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica; e) aprovar o plano de governo do primeiro-ministro.

O governo passa a ser exercido pelo primeiro-ministro e pelo Conselho de Ministros, que repousam na confiança da Câmara dos Deputados e exoneram-se quando ela lhes faltar. Por isso mesmo são atribuídas ao primeiro-ministro inúmeras competências de gestão, como a indicação dos Ministros, a elaboração do plano de governo que será aprovado pelo Presidente da República, a promoção da unidade da ação governamental, a expedição de decretos e regulamentos, entre outras.

Pode-se constatar, portanto, que aquilo que a proposta retira do presidente da república e transfere para o primeiro-ministro são competências determinantes do presidencialismo, ou seja, malgrado mantenha a existência do presidente da república como chefe de estado, o regime político é completamente transformado, e, ainda mais, com grande transformação da legitimidade governamental, já que o povo deixará de eleger o chefe de governo pelo voto direto.

Assim, estando o presidencialismo incluído implicitamente entre as cláusulas pétreas da Constituição Federal de 1988, a proposta de instituição de semipresidencialismo, através da PEC 2/2025 é inconstitucional e sequer pode ser objeto de deliberação no Congresso Nacional, segundo a regra do art.60, §2º, da Constituição Federal.

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1 https://www.migalhas.com.br/depeso/364038/semipresidencialismo-e-inconstitucional. 15/04/2022

Luiz Viana Queiroz

Luiz Viana Queiroz

Advogado, conselheiro Federal da OAB da Bahia, vice-presidente da associação brasileira de constitucionalistas democratas, membro do IAB Nacional e da academia brasileira de direito eleitoral e político – ABRADEP.

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