Nintendo vs. Super Mario: Marcas e identidade local na Costa Rica   Migalhas
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Nintendo vs. Super Mario: Marcas e identidade local na Costa Rica – Migalhas

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1. Introdução

No intrincado universo do Direito da propriedade intelectual, onde as fronteiras entre inovação e tradição frequentemente se esbatem, o caso envolvendo a Nintendo e o supermercado costarriquenho “Super Mario” lança luz sobre os limites e as nuances das normas que regem os registros de marca. Este artigo analisa a decisão proferida pelo Registro Nacional da Costa Rica, que considerou que a proteção concedida à marca “Super Mario” ao estabelecimento local não conflita com os registros internacionais da Nintendo, que abrangem categorias como videogames, vestuário e brinquedos, mas não a comercialização de mantimentos.

O episódio ilustra como os instrumentos jurídicos de proteção de propriedade intelectual podem ser utilizados para favorecer a tradição e a identidade local, mesmo diante do poderio de corporações globais. A discussão suscita reflexões sobre os desafios de conciliar a proteção de marcas consolidadas com a promoção do empreendedorismo regional, destacando a importância da precisão na delimitação das categorias de registro e na avaliação do risco de confusão para o consumidor.

Dessa forma, o caso não só evidencia a importância da especialização e segmentação no registro de marcas, mas também ressalta a necessidade de uma análise aprofundada das implicações jurídicas decorrentes da aplicação dos tratados internacionais, como o TRIPS – Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio e a Convenção da Paris. A análise do uso efetivo da marca e o risco de diluição são cruciais para determinar a validade das reivindicações de proteção.

2. Contextualização fática

O supermercado “Super Mario”, estabelecido há 52 anos em San Ramón, Costa Rica, desfruta de uma longa tradição na comunidade local. Em 2013, a administração registrou a marca na classe pertinente à oferta de produtos da cesta básica, consolidando sua identidade e assegurando proteção jurídica alinhada ao setor alimentício. Esse registro permitiu que o supermercado se estabelecesse como um pilar da economia local, evidenciando o papel dos pequenos empreendimentos na preservação da cultura e da tradição regional.

Em 2024, ao buscar a renovação do registro, o procedimento do supermercado atraiu a atenção da Nintendo, que alegava exclusividade global sobre o nome “Super Mario”. A controvérsia ganhou repercussão não apenas por envolver uma das maiores empresas do setor de entretenimento, mas também por demonstrar como a tradição e o histórico de um negócio local podem prevalecer sobre os interesses de corporações multinacionais, sob a égide da legislação específica. Informações do registro da marca ‘Super Mario’ no sistema do WIPO – Organização Mundial da Propriedade Intelectual, sob o número de registro 403.510, confirmam que a marca está registrada na Costa Rica desde 10/12/24, com validade até 10/12/34, na Classe 35 da Classificação de Nice, que abrange ‘servicios de abastecimiento para terceros de productos de la canasta básica’. O registro da marca também inclui elementos figurativos como quadriláteros e séries de letras (Classificação de Viena 26/4/06, 26/4/22, 27/5/09).

O fato de o estabelecimento ter adotado o nome “Super Mario” em um contexto regional, onde a expressão “super” é comumente utilizada para designar supermercados, reforça a tese de que o uso do nome não configura uma tentativa de capitalizar a imagem dos personagens da Nintendo, mas sim uma estratégia de identificação local. Essa particularidade cultural se insere em um cenário onde a interpretação das normas de propriedade intelectual deve levar em conta as nuances linguísticas e contextuais de cada região. Reforça a boa-fé do supermercado a ausência de evidências de que o estabelecimento tenha se aproveitado indevidamente da reputação da marca Nintendo.

3. Fundamentação jurídica

A decisão do Registro Nacional da Costa Rica fundamentou-se em dois pilares jurídicos essenciais: O princípio da especialidade (ou especificidade da classe registrada) e o princípio da anterioridade. No âmbito da propriedade intelectual, tais fundamentos evidenciam a necessidade de uma delimitação precisa das áreas de proteção para evitar conflitos indevidos.

Princípio da Especialidade: A lei de marcas e outros sinais distintivos da Costa Rica, lei 7.978, embora não declare explicitamente o “Princípio da Especialidade”, o incorpora em diversos artigos. O art. 3 define os signos que podem constituir uma marca, associando-os a produtos ou serviços específicos. O art. 9 (h) exige que a solicitação de registro liste os produtos ou serviços para os quais a marca será usada, agrupados por classes. O art. 25 define os direitos conferidos pelo registro, limitando-os a impedir que terceiros utilizem sinais idênticos ou similares para bens ou serviços “iguais ou parecidos aos registrados para a marca”.

A aplicação do princípio da especialidade implica que a proteção concedida à Nintendo não se estende ao setor de supermercados. Essa proteção estaria condicionada à comprovação do risco de confusão ou da diluição da marca, conforme avaliado à luz dos artigos mencionados.

Acordo de Madri: A Nintendo poderia ter buscado a proteção da marca “Super Mario” na Costa Rica por meio do Acordo de Madri, um sistema internacional que permite o registro de uma marca em múltiplos países através de um único pedido. No entanto, mesmo que a Nintendo possuísse registros internacionais abrangendo a Costa Rica, o princípio da especialidade ainda se aplicaria, limitando a proteção aos setores especificados nos registros.

Princípio da Anterioridade: O princípio da anterioridade também está presente na lei 7.978, especialmente no que diz respeito à avaliação de conflitos entre marcas. O art. 4 estabelece a “Prelación para adquirir el derecho derivado del registro de la marca”, dando preferência a quem já está usando a marca de boa-fé no comércio. O art. 8 (a), (b), (c), (d) impede o registro de um signo como marca se afetar o direito de terceiros que já possuem uma marca registrada, em processo de registro ou em uso, desde uma data anterior.

No caso em questão, o uso do nome “Super Mario” pelo supermercado precede o lançamento da franquia de videogames, reforçando o direito adquirido do estabelecimento.

4. Análise crítica

O episódio transcende a mera disputa sobre direitos de propriedade intelectual, revelando uma tensão subjacente entre a literalidade dos registros e a dinâmica real dos negócios locais. Nesse cenário, a decisão proferida pelo Registro Nacional da Costa Rica evidencia que a proteção das marcas deve ser aplicada com precisão e contextualidade, de modo a evitar que a busca pela exclusividade acabe comprometendo a continuidade e a tradição de empreendimentos consolidados. Assim, essa abordagem ressalta a importância de um sistema registral que valorize a diversidade dos mercados e reconheça as particularidades de cada segmento econômico.

Por outro lado, apesar do forte poder da marca “Super Mario” em escala global, a decisão do Registro Nacional considerou que não havia um risco significativo de confusão entre os consumidores. Esse entendimento se fundamentou na ausência de evidências de que os consumidores associassem o supermercado à Nintendo, além do fato de que o uso comum da palavra “super” em nomes de supermercados na região reforça a ideia de que o nome “Super Mario” é meramente descritivo, sem a intenção de explorar indevidamente a reputação da marca Nintendo.

Nesse mesmo contexto, cabe destacar que a Nintendo poderia argumentar que o uso da marca “Super Mario” pelo supermercado ocasiona uma diluição, enfraquecendo sua capacidade de identificar e distinguir os produtos e serviços da empresa. Todavia, para que esse argumento seja considerado válido, seria imprescindível demonstrar que o uso da marca pelo supermercado prejudica efetivamente a reputação da Nintendo ou diminui sua exclusividade. No caso em análise, a decisão do Registro Nacional levou em conta que a atuação do supermercado se dá em um setor distinto – o comércio de alimentos – o que, em sua avaliação, não ocasiona a diluição da marca Nintendo.

Outra questão fundamental é a análise da boa-fé do supermercado, que se mostra crucial para a compreensão do caso. Não há indícios de que o estabelecimento tenha escolhido o nome “Super Mario” com o intuito de se aproveitar da reputação da Nintendo; ao contrário, o nome é utilizado há mais de 50 anos, inserido num contexto geográfico e cultural específico. Esse aspecto é ainda reforçado por relatos da mídia local, os quais apontam que o proprietário, José Mario Alfaro González, chegou inclusive a cogitar a mudança do nome para evitar uma disputa legal com a Nintendo. Conforme exposto por seu advogado, Edgardo Jiménez, a equipe legal do supermercado “refutou todos os argumentos da Nintendo, demonstrando seus erros e nosso legítimo direito”, evidenciando, assim, a solidez da base legal para a reivindicação do estabelecimento. Essa postura ilustra a clara intenção do proprietário em não infringir direitos de terceiros, bem como em defender o uso legítimo de um nome que se tornou tradicionalmente associado ao seu negócio.

Ademais, a decisão do Registro Nacional da Costa Rica pode ter um impacto limitado em casos futuros, uma vez que cada situação é analisada de acordo com suas próprias circunstâncias. Mesmo assim, o veredito reforça a importância do princípio da especialidade e da análise contextual na proteção de marcas, especialmente quando se trata de casos que envolvem tanto marcas famosas quanto empreendimentos locais.

Por fim, a decisão beneficia diretamente o supermercado “Super Mario”, permitindo que ele continue operando sob o nome que o consagrou na comunidade local, ao mesmo tempo em que protege a economia regional ao evitar que uma grande corporação multinacional inviabilize o funcionamento de um pequeno empreendimento. Do ponto de vista da Nintendo, o impacto financeiro é considerado mínimo, já que a empresa não atua no setor de supermercados na Costa Rica.

5. Considerações finais

O caso “Nintendo vs. Super Mario” na Costa Rica configura-se como um marco relevante na jurisprudência da propriedade intelectual, demonstrando que a proteção das marcas deve ser exercida com base na especificidade e na contextualidade dos registros. A decisão proferida pelo Registro Nacional não apenas salvaguarda a tradição de um empreendimento centenário, mas também reafirma que o direito, quando interpretado de forma rigorosa e contextualizada, pode equilibrar as relações entre os pequenos negócios e as grandes corporações.

A vitória do supermercado “Super Mario” representa uma lição importante sobre a necessidade de se observar a pluralidade dos usos e a relevância histórica dos empreendimentos locais. Em um cenário onde a globalização impõe desafios cada vez maiores, a proteção dos direitos de propriedade intelectual deve ser capaz de dialogar com as realidades regionais, garantindo que a legislação não se torne uma ferramenta de exclusão, mas sim um instrumento de equilíbrio e justiça.

Adicionalmente, a análise deste caso convida a uma reflexão sobre a necessidade de aprimoramento dos registros de marcas, incentivando que empresas globais repensem suas estratégias para incluir a observação das especificidades de cada mercado. Esse movimento pode contribuir para um ambiente de negócios mais justo e dinâmico, no qual a inovação e a tradição caminhem lado a lado, proporcionando segurança jurídica e fomentando o desenvolvimento econômico local e global. O caso “Nintendo vs. Super Mario” serve como um lembrete de que, mesmo diante de grandes corporações, pequenos empreendedores podem defender seus direitos e tradições. Como expresso na mídia local, a vitória do supermercado ‘Super Mario’ é um ‘testamento da determinação de um pequeno empreendedor costarriquenho que se manteve firme contra uma corporação global, provando que até mesmo os menores jogadores podem triunfar em face de probabilidades aparentemente insuperáveis’.

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Registro Nacional da Costa Rica – site oficial: https://www.rnp.go.cr/

Convenção da Paris para a Proteção da Propriedade Industrial: https://www.wipo.int/treaties/pt/text.jsp?file_id=283728

Acordo TRIPS – Organização Mundial do Comércio: https://www.wto.org/english/tratop_e/trips_e/t_agm0_e.htm

Lei de Marcas e Outros Sinais Distintivos da Costa Rica, Lei No. 7978 (Artigos 3, 4, 8, 9, 14, 25, 26, 89):

Lei Nº 6683, de Derechos de Autor y Derechos Conexos (1994) https://www.uaipit.com/uploads/legislacion/files/0000005517_Ley_Derechos_de_Autor_y_Derechos_Conexos_1982_10_14.pdf

Classificação Internacional de Nice (especificar a classe 35 e outras relevantes): https://www.wipo.int/classifications/nice/en/

Registro da marca “Super Mario” no WIPO: https://branddb.wipo.int/en/similarname/brand/CR502024000002687?sort=score%20desc&start=0&rows=30&asStructure=%7B%22_id%22:%22c4a3%22,%22boolean%22:%22AND%22,%22bricks%22:%5B%7B%22_id%22:%22c4a4%22,%22key%22:%22brandName%22,%22value%22:%22SUPER%20MARIO%22,%22strategy%22:%22Simple%22%7D,%7B%22_id%22:%22c49d%22,%22boolean%22:%22OR%22,%22bricks%22:%5B%7B%22_id%22:%22c49e%22,%22key%22:%22appNum%22,%22value%22:%22403510%22%7D,%7B%22_id%22:%22c49f%22,%22key%22:%22regNum%22,%22value%22:%22403510%22%7D%5D%7D,%7B%22_id%22:%22c4a0%22,%22boolean%22:%22OR%22,%22bricks%22:%5B%7B%22_id%22:%22c4a1%22,%22key%22:%22office%22,%22value%22:%5B%7B%22value%22:%22CR%22,%22label%22:%22(CR)%20RNPCR%22,%22score%22:95,%22highlighted%22:%22(CR)%20%3Cem%3ERN%3C%2Fem%3EPCR%22%7D%5D%7D,%7B%22_id%22:%22c4a2%22,%22key%22:%22designation%22,%22value%22:%5B%7B%22value%22:%22CR%22,%22label%22:%22(CR)%20Costa%20Rica%22,%22score%22:95,%22highlighted%22:%22(CR)%20%3Cem%3ECosta%3C%2Fem%3E%20Rica%22%7D%5D%7D%5D%7D%5D%7D&_=1739026979782&fg=_void_&i=0

Reportagem local: https://ticotimes.net/2025/01/30/david-vs-goliath-costa-rican-super-mario-defeats-nintendo-in-court

Victor Habib Lantyer

Victor Habib Lantyer

Advogado e Professor. Mestre em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Autor de dezenas de livros jurídicos. Pesquisador multipremiado.

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