Compras públicas e geopoder: A lição de Ontário e o Mercosul   Migalhas
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Compras públicas e geopoder: A lição de Ontário e o Mercosul – Migalhas

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Embora a recente tensão comercial entre Estados Unidos e Canadá, envolvendo barreiras tarifárias e o rompimento de contratos pela província de Ontário, tenha sido temporariamente apaziguada, a repercussão do episódio demonstrou, de forma inequívoca, como o mercado de contratações públicas pode ser instrumentalizado como uma relevante ferramenta de hard power nas relações internacionais. Basta recordar o anúncio feito pelo primeiro-ministro de Ontário, Doug Ford, acerca do rompimento do contrato com a Starlink, empresa do bilionário Elon Musk, em retaliação às políticas do presidente norte-americano Donald Trump, que ameaçava impor taxas elevadas sobre produtos canadenses, esboçando um cenário de tensão cujo desfecho se deu apenas após uma negociação pontual entre os governantes norte-americano, canadense e mexicano1. Esse acontecimento, por si só, lança luz sobre o quão sensíveis são as cadeias de fornecimento governamental e confirma que as opções de compra estatais podem extrapolar a simples satisfação de necessidades administrativas para assumirem contornos de pressão diplomática e poder geopolítico.

No contexto brasileiro, a compreensão acerca dessa força do Estado como grande comprador é ainda mais importante em razão do peso econômico que as licitações têm para o desenvolvimento nacional e para a política externa. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece que o Poder Executivo possui o dever-poder de concretizar direitos constitucionalmente previstos, o que exige recursos financeiros obtidos por meio de tributos pagos pela sociedade2. Essas arrecadações viabilizam o custeio de políticas públicas, competindo ao Executivo gerir tais valores por meio de uma atividade administrativa que se revela contínua e orientada à satisfação dos interesses públicos3. Como esses interesses não são autossuficientes e demandam investimentos, o Estado se faz presente no mercado, inclusive como agente contratante, mediante processo de licitação4.

Essa movimentação estatal no mercado é de grande expressão econômica. Somente em 2022, no âmbito Federal, foram mais de 80 bilhões de reais gastos em contratações públicas, somando-se licitações e contratações diretas5. Quando se consideram todas as esferas da federação – União, Estados, Distrito Federal e municípios – e os três Poderes, alcança-se uma estimativa de 13% a 16% do PIB – Produto Interno Bruto, percentual superior ao da maior parte dos países integrantes da OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico 6. Tal capacidade de compra converte o Estado brasileiro em protagonista econômico, de modo que as escolhas que ele faz ao contratar passam a produzir efeitos não apenas na dinâmica interna, mas também no cenário internacional. Trata-se, portanto, de um mercado atraente para fornecedores nacionais e estrangeiros, e essa atratividade, por vezes, dá ensejo a estratégias de alinhamento ou pressão política.

A legislação brasileira confere instrumentos que podem ser utilizados com vistas a resguardar interesses nacionais ou regionais, atribuindo à Administração Pública poder de escolha diferenciado. A lei 14.133/21, que inaugurou um novo regime jurídico de licitações e contratos administrativos, autoriza, em seu art. 26, o estabelecimento de margens de preferência a bens manufaturados e serviços nacionais e até mesmo de Estados partes do Mercosul, desde que haja reciprocidade prevista em acordo internacional e aprovada pelo Congresso Nacional. A possibilidade de contratação de produtos com preço superior em relação à proposta de menor valor, caso estejam dentro das margens estabelecidas em regulamento7, conecta o instrumento licitatório a um direcionamento estratégico em prol do desenvolvimento da indústria local e do fomento às relações dentro do bloco econômico do qual o Brasil faz parte. Essa lógica demonstra que o legislador brasileiro vem construindo mecanismos para estimular o crescimento industrial e a inovação tecnológica no país, bem como reforçar laços econômicos com os parceiros regionais.

Esse alinhamento regional no âmbito do Mercosul ganhou novo impulso com a promulgação do Protocolo de Contratações Públicas do bloco, firmado em dezembro de 2021, que permitirá o acesso dos exportadores brasileiros de bens e serviços às contratações públicas dos demais países-membros, em condições de igualdade. Os mercados de compras públicas de Argentina, Paraguai e Uruguai, estimados em aproximadamente R$ 76,2 bilhões, são destinos estratégicos para as exportações brasileiras de produtos manufaturados e serviços, de modo que esse acordo deverá ampliar a corrente de comércio. Em contrapartida, fornecedores estrangeiros desses países também passam a ter permissão de participar das contratações realizadas no Brasil, ao mesmo tempo em que se mantêm resguardadas políticas públicas nacionais de estímulo à inovação, desenvolvimento industrial, compras de produtos estratégicos para o SUS – Sistema Único de Saúde, encomendas tecnológicas e mecanismos de proteção a pequenas e médias empresas, produtores rurais e compensações comerciais em compras públicas. Além disso, o acordo prevê dispositivos para garantir transparência e previsibilidade nos processos licitatórios, assegurando maior segurança jurídica e facilitando a competição leal entre os agentes econômicos. O Uruguai já internalizou o Protocolo em seu ordenamento jurídico, de modo que o acordo entrará em vigor bilateralmente para Brasil e Uruguai, enquanto Argentina e Paraguai finalizam as formalidades necessárias8.

No Brasil, esse protagonismo das compras governamentais está alinhado às diretrizes constitucionais que incumbem o Estado de promover o bem de todos e desenvolver a economia nacional de forma equilibrada9. Há também a necessidade de observar princípios fundamentais na condução das licitações, tais como legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, para evitar o desvio de finalidade no uso desse poder de compra. Ainda assim, a margem de preferência e outras políticas semelhantes ilustram como o país pode se valer de seu vultoso volume de contratações para incentivar setores específicos, gerar empregos, aprimorar a competitividade industrial e, simultaneamente, afirmar-se no cenário externo como parceiro comercial relevante e estratégico.

O conceito de desenvolvimento nacional sustentável, inclusive, conecta-se intrinsecamente à ideia de que as compras públicas devem valorizar práticas ambientalmente adequadas, socialmente justas e economicamente viáveis. Os dispositivos da lei 14.133/21 reforçam a possibilidade de inserir critérios de sustentabilidade e inovação nos editais, privilegiando, por exemplo, produtos recicláveis ou biodegradáveis, ou que ostentem alto grau de desenvolvimento tecnológico. Ao adotar tais políticas, o Brasil não apenas se beneficia ao estimular a indústria local, mas também sinaliza a parceiros internacionais o comprometimento do governo brasileiro com pautas de proteção ambiental, inovação e responsabilidade social, o que pode influir na celebração de futuros acordos bilaterais ou multilaterais.

Nesse ponto, cabe destacar que a integração econômica, no caso brasileiro, extrapola as fronteiras do próprio país e alinha-se a compromissos regionais, a exemplo do recém-promulgado Protocolo de Contratações Públicas do Mercosul. A abertura de margens de preferência para empresas dos Estados partes reforça a perspectiva de cooperação regional que transcende o mero fornecimento de bens e serviços. Isso revela uma faceta de política externa: a licitação se converte em instrumento de estímulo ao comércio intrarregional, fortalecendo cadeias produtivas locais e estreitando laços políticos entre as nações integrantes do bloco. Dessa forma, o episódio envolvendo Estados Unidos e Canadá, embora solucionado de modo pontual, sinaliza o quanto as relações comerciais podem ser afetadas pelas decisões de compra dos Estados. No Brasil, onde o percentual do PIB alocado às licitações e contratações ultrapassa a média dos países da OCDE, não se pode subestimar a relevância estratégica do mercado público como motor de desenvolvimento interno e como ferramenta de política externa. Uma adequada compreensão de como o ordenamento jurídico pátrio disciplina essa matéria é fundamental para que gestores públicos, empresários e a sociedade civil possam vislumbrar de que modo as contratações podem – e devem – gerar resultados que extrapolam a mera compra de bens e serviços, alcançando objetivos maiores, como a consolidação de políticas públicas, a promoção de inovação, a proteção da indústria local e, eventualmente, o exercício de um poder que se projeta no plano internacional.

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1″Ford ainda prometeu que, a partir de terça-feira, empresas americanas não poderão mais disputar contratos públicos na sua província. “O Canadá não começou essa luta com os EUA, mas é melhor você acreditar que estamos prontos para vencê-la”, disse Ford.” CHADE, Jamil. Ontário, no Canadá, “rasga” acordo com Starlink; EUA faz acordo com Trudeau. UOL Notícias, 3 fev. 2025. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2025/02/03/provincia-do-canada-rasga-contrato-com-musk-em-retaliacao-a-trump.htm. Acesso em: 05 fev. 2025. Grifos nossos

2 FARO, Julio Pinheiro. Solidariedade e justiça fiscal: uma perspectiva diferente sobre a concretização de direitos a partir do dever de pagar impostos. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v.81, p. 229-270, out./dez. 2012.

3 SADDY, André. Curso de Direito Administrativo Brasileiro. Rio de Janeiro: CEEJ, 2022, p. 161.

4 Vide art. 37, XXI, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

5 PORTAL DA TRANSPARÊNCIA. Licitações com contratações realizadas. Disponível em: https://portaldatransparencia.gov.br/licitacoes?ano=2022. Acesso em: 2 fev. 2025.

6 DOTTI, Marinês Restelatto. Governança nas Contratações Públicas: Aplicação efetiva de diretrizes, responsabilidade e transparência: Inter-relação com o direito fundamental à boa administração e o combate à corrupção. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 19-20.

7 Vide Decreto nº 11.890, de 22 de janeiro de 2024.

8 BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. Promulgado Acordo sobre Compras Públicas do Mercosul. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/mdic/pt-br/assuntos/noticias/2024/dezembro/promulgado-acordo-sobre-compras-publicas-do-mercosul. Acesso em: 10 fev. 2025.

9 MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 86.

Jader Esteves da Silva

Jader Esteves da Silva

Mestre e Especialista em Direito. Bacharel em Direito e em Ciências Navais. Professor de Direito aplicado às Licitações e Contratos Administrativos. Autor e Palestrante. Instagram: @jader.esteves

Carolina de Morais Azeredo Nunes

Carolina de Morais Azeredo Nunes

Bacharel em Administração, com ênfase em Administração Pública pela Academia da Força Aérea (2017). Pós-graduada em Direito Administrativo pela Faculdade Unyleya (2019). Membro do GDAC.

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