Omissão sobre o recurso cabível contra as medidas protetivas   Migalhas
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Omissão sobre o recurso cabível contra as medidas protetivas – Migalhas

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1. Introdução

Desde o seu advento em 2006, a lei Maria da Penha nunca regulamentou o recurso cabível contra a decisão que concede ou prorroga as medidas protetivas de urgência. A importância da lei Maria da Penha para o combate e prevenção à violência doméstica e familiar contra a mulher é inegável. Somos totalmente a favor desse ecossistema de proteção. Isso não significa que a lei 11.340/06 esteja imune a erros que precisam urgentemente de correções.

Dentre os pontos de melhoria que sugerimos nesse ensaio crítico está a necessidade imperiosa de regulamentação do recurso cabível contra decisão que concede ou prorroga as medidas protetivas de urgência no contexto da lei Maria da Penha, bem como seu prazo de interposição.

2. Desenvolvimento

Atualmente, tanto a lei Maria da Penha quanto a jurisprudência são completamente silentes em relação ao cabimento do recurso nas hipóteses de concessão e prorrogação de medidas protetivas. A lei Maria da Penha se limitou a regular as medidas protetivas, mas a forma de controle do ato judicial que concede ou prorroga as restrições imperou-se o mais absoluto silêncio e descaso.

Evidentemente, no âmbito legislativo, não era de se esperar que algum parlamentar se preocupasse com o direito fundamental ao recurso contra as medidas protetivas ou a sua prorrogação. Da forma como as protetivas foram dispostas na lei, a impressão que dá é que elas foram instituídas para serem concedidas sem possibilidade de defesa e com duração ad aeternum. Como essa possibilidade não seria aprovada na Comissão de Constituição e Justiça do Congresso Nacional, foi criado um eufemismo: no lugar de dizer que a vigência das restrições seria para sempre, foi empregada a expressão indeterminado como sinônimo de perpétuo. Dizer que as protetivas perduram até que a situação de risco deixe de existir é tão arbitrário quanto condicionar as protetivas ao arbítrio do desejo da vítima.

A omissão legislativa é um sintoma triste do completo descaso ao direito fundamental ao recurso, que encontra derivação no direito constitucional e humano à defesa. Suspeito que o esquecimento da previsão recursal na lei tenha sido proposital, afinal de contas, pensar em regulamentar o direito ao recurso, ainda mais contra as medidas protetivas, seria uma iniciativa impopular, que custaria votos.

Apesar da completa falta de regulamentação legal e jurisprudencial, fato é que o problema existe e precisa ser enfrentado com responsabilidade, afinal de contas, há 18 anos convivemos sem qualquer disciplinamento sobre a matéria. Ante a falta de previsão legal, o problema deveria ser dirimido pelo Poder Judiciário. Decerto, o Poder Judiciário tem procurado pontualmente resolver o impasse, mas o problema está longe de uma solução definitiva. A falta de uma regulamentação padronizada, que obrigue todos os juízes, fomenta a imprecisão e a insegurança jurídica. Como a lei não indica o recurso cabível, cada unidade jurisdicional adota o seu recurso à la carte, gerando uma tremenda confusão e enxurrada de decisões conflitantes.

Em regra, a definição do recurso geralmente decorre da natureza jurídica do provimento jurisdicional combatido. Definir qual é a natureza jurídica das medidas protetivas de urgência concedidas no contexto da lei Maria da Penha é um desafio ante a pluralidade de interpretações divergentes. Sobre o tema, há diversas correntes de pensamento: a mais comum defende que as protetivas seriam medidas cautelares autônomas; outra corrente sustenta que as protetivas seriam tutelas de urgência cíveis satisfativas; outra sustenta que seriam medidas cautelares preparatórias. Essa última corrente foi superada pela lei 14.550/23. Por outro lado, não se pode olvidar que as protetivas possuem natureza sui generis ou híbrida, ostentando simultaneamente feição cível e criminal. Há restrições que ostentam natureza cível, e outras de matriz claramente penal. Como se pode observar, eleger o recurso com base na natureza do provimento proferido se mostra um desafio enorme e não resolve o problema.

É fato que toda essa discussão estéril poderia ser evitada e resolvida se o legislador criasse um dispositivo na lei indicando o recurso cabível contra a decisão que concede ou prorroga as medidas protetivas, acompanhado, é claro, do prazo para a sua interposição.

Como o legislador não previu a modalidade recursal, voltamos para o desafio de encontrar o recurso cabível.

Ainda que o operador do direito analise bem a decisão, não tenha dúvida de que em muitos casos o recurso não será admitido porque o julgador entenderá que o recurso interposto não é o correto na sua avaliação. Tal providência abrirá uma nova etapa mais demorada no processo, que é a interposição de carta testemunhável contra a decisão que não conheceu do recurso interposto. Isso significa que teremos um recurso interposto para se analisar se o recurso não admitido será julgado. O apego à forma chegou às últimas consequências. Bem-vindo a Roma! É o mesmo que deixar o paciente morrer pela falta de uma questão burocrática qualquer.

Essa situação não pode continuar sendo tratada dessa maneira. É preciso regulamentação urgente. Quando eu afirmo regulamentação, estou cobrando previsibilidade e racionalidade. No limite, queremos saber, afinal de contas, qual o recurso cabível? Não podemos mais, na era tecnológica e da informação, continuar agindo como se estivéssemos em Roma, onde o recurso era rejeitado se o recorrente errasse uma vírgula. Não podemos prestigiar mais a forma do que o conteúdo. É preciso padronização e tratamento do assunto com seriedade e responsabilidade. Não podemos nos valer da teoria do passarinho, segundo a qual eu seguro dois pássaros com as mãos e os coloco para trás e pergunto ao recorrente: em qual mão está o passarinho? Se o recorrente disser que o canário está na mão esquerda, o pássaro é colocado na mão direita, acompanhada do seguinte despacho: o recorrente errou o recurso e, por isso, não o admito. Se a lei não previu o recurso cabível, abrimos margens para decisões arbitrárias. E, a partir disso, o recurso não será conhecido e a decisão em essência tornar-se-á irrecorrível na prática. Entenderam como o jogo funciona? Para atuar no âmbito da lei Maria da Penha, é preciso compreender como a partida é jogada; não há espaço aqui para amadores. Atuar nessa lei, é preciso conhecer como esse ou aquele julgador pensa, sobretudo saber qual o recurso de estimação ele cultua. Caso contrário, recorrer sempre será um ato de sorte.  

Diversos recursos são tolerados no contexto das medidas protetivas. Há juízes que simpatizam com apelação; outros adotam o agravo de instrumento; há quem tenha uma predileção pelo recurso em sentido estrito (RESE); outros afirmam que, como a lei foi omissa, a parte interessada deve impetrar habeas corpus ou lançar mão do mandado de segurança.

Evidentemente, essa forma de ver a questão não se preocupa com a segurança jurídica. O recurso não pode depender da vontade desse ou daquele juízo. É preciso padronização. É necessário que a lei seja atualizada. Em 2023 e 2024, tivemos duas grandes reformas legislativas na lei Maria da Penha, uma promovida pela lei 14.550/23 e outra mais recente, levada a efeito pela lei 14.994/24. Apesar disso, nenhuma delas foi capaz de regulamentar essa questão tão básica, o que me faz suspeitar de omissão proposital. Não há interesse em regulamentar a criação de um recurso contra a concessão ou prorrogação das medidas protetivas, porque, repito, contrariar a opinião pública não gera voto.

Já que o Congresso Nacional é omisso, defendemos que a questão seja regulada provisoriamente pelo CNJ, como tem feito em diversas questões relacionadas à lei Maria da Penha, como, por exemplo, a resolução 492/23 que regulou o protocolo de julgamento sob perspectiva de gênero.

3. Conclusão

Proteger a vítima de violência doméstica é um dever do Estado e somos totalmente a favor. Toda proteção à mulher vítima é bem-vinda. Porém, regulamentar o recurso cabível contra decisão que concede ou prorroga medidas protetivas também é uma forma de concretização do direito humano de defesa daquele submetido às restrições de seus direitos. Prever apenas restrições e não regular o recurso cabível contra as medidas protetivas é uma forma de violação aos direitos fundamentais.

Ainda que o Poder Legislativo continue deixando de regulamentar a matéria, cumpre ao Poder Judiciário, notadamente ao CJN, esse papel, eliminando a insegurança jurídica que grassa o sistema de justiça nacional. É preciso a criação de um protocolo cogente que defina o recurso cabível e o correlato prazo de sua interposição. Enquanto isso não acontecer, infelizmente o recurso contra as protetivas ou a sua concessão continuará sendo definido à la carte de forma arbitrária por cada juízo.

Os efeitos deletérios da falta de disciplinamento refletem no aumento de manifestações e de recursos, incrementando o trabalho e gerando mais custos, além de insegurança e descrédito na Justiça. Enquanto a sistematização não surge, o recurso contra as medidas protetivas continuará sendo uma incógnita. Diante desse quadro, defendemos a aplicação do princípio da fungibilidade e a interposição do recurso em RESE – Sentido Estrito, por ser o recurso com o menor prazo de interposição.

Júlio Cesar Konkowski da Silva

Júlio Cesar Konkowski da Silva

Advogado especializado na defesa na LEI MARIA DA PENHA e em MEDIDAS PROTETIVAS, com atuação em todo o Brasil.

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