Processo legislativo, comissões permanentes e participação cidadã   Migalhas
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Processo legislativo, comissões permanentes e participação cidadã – Migalhas

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Introdução

A lei é o resultado da produção democrática do Direito, com iniciativa de autoridade competente e regular processamento. Sendo produção democrática, pressupõe como requisito a participação cidadã direta ou indireta.

Lênio Streck1] refere que “O processo legislativo em sentido estrito é uma cadeia ou sequência de atos próprios do Poder Legislativo, que estão normativa e especificamente interligados, tendo por objetivo realizar a tarefa primordial de um regime democrático: a promulgação de leis, que representa o retrato da produção democrática do direito.”

A CF/88 estabelece essa sequência de atos do processo legislativo nos arts. 59 a 69, sendo que no art. 58 prevê a criação de comissões permanentes[2] e suas competências, dentre estas, discutir e votar proposições sujeitas à deliberação do plenário; ou conclusivamente projetos de lei, nos casos de dispensa da análise do plenário.

Essa etapa de discussão e votação nas comissões permanentes se concretiza através do procedimento previsto nos regimentos internos[3] das Casas Legislativas[4], que de modo geral preveem: recebimento do projeto, designação de relator, instrução processual, pedido de vista, discussão e votação do parecer técnico-legislativo, ou do projeto de lei nos casos sujeitos a deliberação em plenário.

Essa sequência de atos processuais próprios da comissão permanente corresponde a um mini processo, inclusive com previsão de interposição recursal ao plenário das decisões proferidas no âmbito das comissões.

Logo, o processo legislativo possui estrutura processual prevista na constituição e nos regimentos das Casas Legislativas, visando, nas palavras de Lênio Streck, a elaboração democrática do Direito.

Da participação cidadã

O processo de entrega da lei possui como requisito de validade a produção democrática do Direito, logo, com participação cidadã. 

Esta participação ocorre desde a proposição do projeto, por iniciativa popular, ou através da representação, e também de forma direta em todos os demais atos processuais da fase de instrução[5], especialmente nas comissões permanentes, mediante consultas a especialistas na matéria objeto de determinado projeto, ou através audiências públicas com técnicos e interessados na matéria ou ainda com o emprego de novas tecnologias permitindo ampliar a participação.

Contudo, há uma evidente crise no Poder Legislativo de ordem multifatorial, uma delas o excesso de proposições normativas, oferecidas como mercadorias dispostas em um catálogo de lei em sites “especializados”,onde o parlamentar pode aplicar um “filtro” e melhor escolher o produto almejado. Tal situação, comum Brasil afora, escancara inegável déficit de representatividade, e por outro lado uma “inflação legislativa”[6] que somente favorece o descrédito na lei.

Essa “crise do legislativo”[7] e o emprego de novas tecnologias sugerem uma nova visão sobre o processo legislativo. Paulo Bonavides[8] refere que “outra classe política já se desenha, ao alvorecer deste Terceiro Milênio: a do cidadão partícipe, vocacionada, de imediato, para a democracia direta, aquela que entra em substituição dos corpos representativos…”.

Não há mais sentido, na era da comunicação em rede, cogitar que o Parlamento se paute unicamente pela técnica da elaboração legislativa, sem aproximação dialógica com o cidadão. Efetivamente esse modelo não é mais viável. O curso da história mostra uma evolução na humanidade, do súdito ao cidadão, e agora ao cibercidadão[9] referência de Antonio Enrique Péres Nuño ao cidadão em rede, numa nova relação com a Administração Pública, não de forma passiva, mas como “artífice na construção do processo democrático”.

Em âmbito municipal observo alguns casos de projetos de lei de nomenclatura de rua sem que os moradores tenham sido consultados! Também observo uma corrida por temas como “proteção animal” e “causa dos autistas”, dentre outros – retirados do catálogo em rede de pré-projetos – sem qualquer base dialógica com os interessados.O processo está em rede, mas não há diálogo. No processo em rede sem diálogo, apenas o parlamentar participa do processo. Aliás, em muitos casos o parlamentar proponente sequer comparece às comissões permanentes para contribuir com a fase de instrução.

Têmis Limberger[10] refere que “a democracia representativa …, nos parlamentos contemporâneos, atualmente é acrescida de mecanismos de democracia participativa (referendo, plebiscito, iniciativa popular, etc.) e encontra novas perspectivas com o advento da comunicação em rede.”

Ainda conforme Têmis Limberger, “um dos grandes objetivos da democracia é possibilitar uma rede de comunicação direta entre a Administração e os administrados, que propicie um aprofundamento democrático e uma melhor transparência e eficiência da atividade pública”[11].

O incremento de novas ferramentas tecnológicas, como o processo legislativo na rede mundial de computadores, e as práticas seguras de participação como o caso das urnas eletrônicas eleitorais, somado a isso a nova dinâmica das relações pós-pandemia da Covid-19, evidenciam que o processo legislativo pode estar ao acesso pleno do cidadão, não só como leitor ou ouvinte, mas como partícipe na efetivação de uma democracia direta.

A atividade de produção da lei é atividade pública que requer “cibertransparência[12]” e participação do “cibercidadão” em todas as fases do processo legislativo, o que é viável pelo emprego de novas tecnologias que favorecem transparência, acesso à informação e participação cidadã.

Os processos legislativos em rede permitem amplo debate nas redes sociais, mas é possível ir além, usando novas tecnologias para a participação cidadã direta no processo dentro das comissões permanentes, com relação dialógica entre cidadãos e integrantes das comissões, e não meramente o monólogo com o cidadão ouvinte.

Conclusão

A participação cidadã no processo legislativo é indispensável à produção da lei no Estado Democrático de Direito, e está inserida na sequência de atos processuais prevista na CF e nos regimentos das casas legislativas, através de audiências públicas ou consultas a especialistas e interessados, contudo é necessário ampliar a participação direta na fase constitutiva, e as novas tecnologias são instrumentos hábeis tal fim.

_________

1 Comentários à Constituição do Brasil/ J. J. Canotilho… (et al.). São Paulo: Saraiva/Almedina. 2013. P. 1.121.

2 De caráter técnico-legislativo (art. 22, inc. I, Regimento da Câmara dos Deputados).

3 “Junto ao Congresso Nacional e às suas casas, funcionam Comissões, permanentes ou temporárias, reguladas internamente pelo Legislativo.” Mendes, Gilmar Ferreira, Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de direito constitucional. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014. P. 873.

4 Vide exemplificativamente o § 1º do art. 24 do Regimento da Cãmara dos Deputados.

5 Moraes, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2013. P. 669.

6 As mais diversas e importantes correntes da atualidade debruçam-se sobre algumas teses a fim de solucionar o que Francesco Carnelutti, já na década de cinquenta afirmava a existir: a crise da lei, a crise do direito, mais tarde renomeada por ele: a morte do Direito. O Mestre Italiano introduziu a expressão ‘inflação legislativa’ no direito baseada no termo inflação monetária ao afirmar que a produção de leis , como a produção de mercadorias em série, resulta em um descuido quanto à elaboração, tira a garantia de certeza do direito e, como consequencia, fomenta a desvalorização da crença na lei. CARNELUTTI, F. Como nace el derecho. Tradução: Santiago Sentis Melendo, Marino Ayerra Redín. 3ª ed. Santa Fé de Bogotá, Colômbia: Temis, 2000. (Monografias jurídicas, 54).

7 Crise da lei e crise legislativa. Vide Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. 5ª ed. rev. ampl.e atual. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 12.

8 Teoria constitucional da Democracia Participativa. Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros Edidores, 2008. P. 344.

9 Cibertransparência: informação pública em rede: a virtualidade e suas repercussões na realidade. Têmis Limberger. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016. P.84.

10 Têmis Limberger(ob. Cit.). P.89.

11 Ob. cit. P. 89.

12 Transparência na rede.

Jefferson Oliveira Soares

Jefferson Oliveira Soares

Mestrando em Direito Constitucional na UNISINOS, Especialista em Direito do Trabalho pela UNISINOS. Advogado sócio da SOARES & BAZANA Advogados Associados.

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