Justiça tributária multiportas: Quando a porta principal falha   Migalhas
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Justiça tributária multiportas: Quando a porta principal falha – Migalhas

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Multiportas da justiça tributária e a falta de confiança na porta principal: Uma ameaça ao Estado de Direito

O conceito de “Justiça Multiportas” busca oferecer aos jurisdicionados uma gama de possibilidades para a resolução de conflitos, de modo a tornar o acesso à justiça mais célere e eficiente. No âmbito tributário, essa abordagem se manifesta por meio da jurisdição estatal, da transação tributária, do contencioso administrativo e de outros mecanismos de solução de controvérsias.

Contudo, o que se observa no cenário atual é um movimento inverso ao propósito original dessa concepção: a porta principal – a jurisdição estatal – tem se tornado a opção menos confiável, levando os contribuintes a se submeterem a alternativas que, na maioria das vezes, são prejudiciais à sua esfera jurídica.

A jurisdição estatal como porta de incerteza

A jurisdição estatal deveria ser o fundamento da previsibilidade e da segurança jurídica, garantindo que as normas tributárias fossem interpretadas de forma estável e coerente. No entanto, a postura adotada pelos tribunais superiores tem caminhado em sentido oposto. A recorrente modulação de efeitos das decisões tributárias, quase sempre em prejuízo dos contribuintes, vem instaurando um cenário de profunda insegurança jurídica.

O STF e o STJ têm, reiteradamente, alterado entendimentos consolidados sem uma justificativa suficientemente robusta, desconsiderando as legítimas expectativas criadas ao longo dos anos pelos contribuintes. A aplicação da modulação de efeitos tem sido feita de maneira excessivamente pragmática, muitas vezes sob o pretexto de evitar impactos financeiros ao Estado, mas sem a devida atenção à proteção da confiança e à segurança jurídica dos administrados.

O princípio da proteção da confiança e a violação sistemática pelos tribunais

O princípio da proteção da confiança, conforme delineado por Humberto Ávila, é uma dimensão essencial da segurança jurídica e do Estado de Direito. Para que haja confiança legítima no ordenamento jurídico, é necessário que o Poder Público atue de maneira previsível e coerente, garantindo que os cidadãos possam pautar suas condutas com base nas normas e interpretações vigentes sem receio de que essas regras sejam abruptamente alteradas em seu desfavor.

Segundo Ávila, para que a confiança seja protegida, é preciso que:

  • Exista uma base objetiva que legitime a expectativa do particular;
  • Haja confiança efetiva depositada nessa base;
  • O contribuinte tenha praticado atos jurídicos com fundamento nessa confiança;
  • Essa expectativa não seja frustrada por uma ação contraditória do Poder Público.

Contudo, o que se verifica na atuação dos tribunais superiores é a recorrente violação desses requisitos. O Fisco, amparado em sucessivas decisões judiciais, vê suas teses serem reiteradamente moduladas de maneira a beneficiar o Estado e onerar os contribuintes. Dessa forma, os princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção da confiança são relativizados para preservar interesses arrecadatórios.

Julgamentos recentes e a quebra da confiança dos contribuintes

Algumas decisões ilustram esse fenômeno. No RE 1.490.708, por exemplo, o STF alterou o entendimento consolidado sobre a incidência de ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte. O tribunal reconheceu (Tema 1367) que essa cobrança era indevida, mas modulou os efeitos da decisão para impedir que os contribuintes recuperassem valores pagos indevidamente nos cinco anos anteriores, salvo algumas exceções. O argumento utilizado foi o risco de impacto financeiro nos cofres públicos, desconsiderando o fato de que os contribuintes realizaram pagamentos com base na legislação vigente e na jurisprudência anterior.

Outro exemplo emblemático é o julgamento do RE 574.706, que decidiu pela exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins. Após anos de discussões, o STF decidiu que a tese dos contribuintes era válida, mas, ao modular os efeitos da decisão, restringiu significativamente o direito à restituição de valores pagos indevidamente. A fundamentação adotada mais uma vez priorizou a estabilidade fiscal do Estado em detrimento da previsibilidade e da confiança que os contribuintes depositavam na jurisprudência consolidada.

O refúgio na transação tributária e a renúncia forçada de direitos

Diante dessa instabilidade, os contribuintes, em vez de recorrerem à jurisdição estatal para questionar débitos notoriamente indevidos, acabam optando por alternativas como a transação tributária. Essa opção, que deveria ser um meio legítimo de negociação entre o Fisco e os contribuintes, tornou-se, na prática, uma armadilha para aqueles que, receosos com as reviravoltas do Judiciário, preferem confessar créditos tributários indevidos apenas para evitar um contencioso que pode se arrastar por anos e, ao final, resultar em uma decisão inesperada e prejudicial.

O problema não reside na transação tributária em si, mas na forma como ela é utilizada. O contribuinte, inseguro quanto à estabilidade das decisões judiciais, é pressionado a aceitar acordos que lhe são desfavoráveis, pois não pode confiar que a Justiça assegurará seu direito. A renúncia forçada de direitos, em função da incerteza sobre o comportamento do Judiciário, é um sintoma grave da crise da segurança jurídica no Brasil.

A consequência final: A fragilização do Estado de Direito

A erosão da confiança na jurisdição estatal não é um problema menor. Quando os cidadãos e as empresas deixam de acreditar que o Judiciário é capaz de garantir um julgamento previsível e justo, o próprio Estado de Direito é comprometido.

O princípio da legalidade tributária, que exige previsibilidade e estabilidade na relação entre Fisco e contribuinte, torna-se uma mera formalidade quando o próprio Poder Judiciário adota posturas contraditórias e moduláveis conforme a conveniência do momento.

O impacto desse fenômeno vai além da esfera tributária. A ausência de segurança jurídica afeta investimentos, reduz a competitividade do país e mina a credibilidade do sistema jurídico brasileiro perante os agentes econômicos.

Se o próprio Estado não respeita as expectativas legítimas dos contribuintes, como esperar que investidores nacionais e estrangeiros tenham confiança no ambiente regulatório do país?

Conclusão: A necessidade de resgate da segurança jurídica

A Justiça Multiportas, em sua concepção original, deveria ser um instrumento para ampliar o acesso à justiça e garantir maior eficiência na resolução de litígios. No entanto, a deterioração da confiabilidade da porta principal – a jurisdição estatal – tem forçado os contribuintes a buscar saídas alternativas, muitas vezes prejudiciais, para evitar a incerteza do contencioso judicial.

Os tribunais superiores precisam reavaliar sua postura e compreender que a estabilidade e a previsibilidade do ordenamento jurídico não podem ser relativizadas em nome de interesses arrecadatórios. A proteção da confiança deve ser uma diretriz central das decisões tributárias, e a modulação de efeitos não pode continuar sendo utilizada como um mecanismo automático de blindagem do Fisco.

O Estado de Direito não pode ser refém da conveniência fiscal. Se a jurisdição estatal deseja recuperar sua legitimidade, é essencial que volte a ser um espaço de previsibilidade, coerência e respeito às legítimas expectativas dos contribuintes. Caso contrário, a Justiça Multiportas continuará sendo um eufemismo para um sistema em que a única porta realmente aberta é aquela que favorece o Estado em detrimento do cidadão.

Ramon Fávero

Ramon Fávero

Advogado fundador do Fávero Sociedade de Advogados. Dupla titulação de especialista em Direito Tributário (IBET e LFG). Mestrando em Direito Processual (UFES). Professor de Direito.

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