CompartilharComentarSiga-nos no A A
Existe uma ficção que ainda persiste em alguns discursos sobre o processo penal brasileiro: a de que os grandes problemas decorrem de grandes falhas, que seriam corrigíveis por mais leis ou reformas apressadas. Mas quem lida com a prática sabe que o buraco é mais fundo – e, paradoxalmente, mais localizado.
Talvez valha olhar para esse sistema à luz de uma teoria econômica do século XIX: o princípio de Pareto, ou regra do 80/20. Princípio de Pareto afirma que 80% dos resultados vêm de 20% dos esforços. Ela foi desenvolvida pelo economista italiano Vilfredo Pareto, que observou que 80% das terras na Itália estavam nas mãos de 20% da população. Pareto percebeu que uma minoria (20%) era responsável por uma maioria (80%) dos efeitos1. Com o tempo, outros estudiosos começaram a notar esse padrão em diversas áreas – daí a ideia de que “nem tudo tem o mesmo peso” quando estamos falando de resultados.
O princípio de Pareto voltou a ficar em voga em razão da séria “Adolescência”, que está em alta na Netflix. No seriado, o Princípio de Pareto é aplicado aos relacionamentos, numa lógica de que 80% das mulheres só se interessam por 20% dos homens. Aqui, objetivo é aplicar a Teoria 80/20 (Princípio de Pareto) como ferramenta analítica e crítica à estrutura e funcionamento do processo penal brasileiro. A partir da constatação de que uma minoria dos fatores gera a maioria dos efeitos, busca-se evidenciar como determinadas violações a direitos e garantias fundamentais – bem como a prerrogativas da advocacia – concentram a maior parte das ilegalidades e distorções que comprometem a paridade de armas, o devido processo legal e o próprio Estado Democrático de Direito.
Segundo essa lógica, 20% das causas são responsáveis por 80% dos efeitos. Transportado ao universo processual penal, o raciocínio é direto: uma minoria de práticas rotineiras concentra a esmagadora maioria das violações de garantias fundamentais.
A pergunta que se impõe, então, é: quais são os 20% que seguem estrangulando o devido processo legal, dia após dia? A reflexão crítica que se propõe não é empírica, mas normativa: é preciso identificar os núcleos duros das ilegalidades reiteradas no processo penal e enfrentá-los com prioridade, sob pena de perpetuação de um modelo seletivo, autoritário e antidemocrático.
A exceção virou padrão. A própria experiência forense cotidiana indica que certas práticas concentradas ainda que minoritárias em quantidade – são responsáveis por grande parte da corrosão dos direitos fundamentais.
O primeiro foco de desvio é velho conhecido: a prisão preventiva. O CPP é claro ao tratar a prisão como medida excepcional (art. 312). A Constituição é ainda mais enfática: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado (art. 5º, LVII). Mas a realidade mostra que essas garantias cabem melhor em manuais do que em decisões judiciais.
A prisão preventiva, em muitos casos, virou resposta padrão e perpetuação da prisão em flagrante ou instauração de inquérito policial, independentemente da existência de risco concreto ou contemporâneo. Invocam-se expressões genéricas como “garantia da ordem pública” e “gravidade do crime”, esquecendo-se que o periculum libertatis não pode ser presumido e deve seguir a regra da atualidade2.
Por vezes, a jurisprudência tenta puxar o freio, a exemplo do RHC 207.151/SP, onde o STJ reconheceu que a mera gravidade do crime, isoladamente, não autoriza a segregação cautelar. Mas, apesar dos freios jurisprudenciais, o número de presos provisórios ainda gira em torno de 200 mil. O efeito prático? Uma avalanche de habeas corpus e uma justiça penal que prende muito e julga mal.
Outra pequena prática comum, mas que é responsável por grandes danos ao processo penal é o desrespeito ao direito de não produzir prova contra si mesmo.
Basta lembrar dos verdadeiros interrogatórios realizados pela Polícia Militar no momento da prisão em flagrante, sem sequer fazer o “Aviso de Miranda” e dizer que nada do que o sujeito disser será o seu desfavor. Aqui prejudica. E muito.
Outra grande distorção está naquilo que deveria ser óbvio: contraditório e ampla defesa. Mas, no Brasil, defender-se bem é quase um ato de resistência.
Pedidos probatórios negados sem justificativa, ausência de paridade de armas, acesso aos autos obstruído sob o pretexto de “sigilo”, Overcharging prosecution, ocasionando um verdadeiro excesso narrativo fático-acusatório que inviabiliza o exercício do direito de defesa3 – tudo isso são alguns dos exemplos que compõem um cenário em que o contraditório é tratado como enfeite processual.
No julgamento do HC 166.373, o STF foi além e reconheceu a nulidade de uma condenação porque a defesa do corréu delatado não pôde se manifestar por último.
Decisão correta, mas sintomática: ainda precisamos que a Corte Suprema diga o óbvio.
Mesmo com a recente inserção da regra de observância da cadeia de custódia da prova no CPP, essa questão faz parecer que a prova é uma caixa-preta.
Poucas expressões técnicas ganharam tanta importância nos últimos anos quanto “cadeia de custódia”. A lei 13.964/19 tentou organizar o tema nos arts. 158-A e seguintes do CPP. Mas a realidade mostra que os Tribunais ainda não entenderam que prova sem lastro é apenas suspeita legitimada pelo processo. Exemplo disso são as decisões onde afirmam que, mesmo quando há a quebra da cadeia e custódia, a defesa deve comprovar o prejuízo ao réu.
Um juiz parcial, um processo viciado: a lição que ainda estamos aprendendo. O caso do presidente Lula e a declaração da parcialidade do ex-juiz Sergio Moro no HC 164.493/PR consolidaram uma verdade incômoda: um juiz parcial não apenas contamina o processo – ele o invalida por completo.
O tema volta a ganhar relevância em razão do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro no STF por tentativa de Golpe. Apesar das Arguições de Overcharging prosecution e limites para imputação criminal. Disponível aqui.
Impedimento e suspeição apresentadas em desfavor dos ministros Flávio Dino, Cristiano Zanin e Alexandre de Moraes, o STF rejeitou o pedido de afastamento dos magistrados.
Nem 20% dos presidentes da República sofrem um processo penal. Mas a inobservância de regras básicas do sistema acusatório gera uma probabilidade de 80% de certeza de condenação…
A imparcialidade é cláusula estrutural do sistema acusatório democrático. Quando o magistrado abandona a toga de árbitro para vestir a camisa da acusação, rompe-se a paridade de armas e transforma-se o processo em ritual de legitimação da condenação já decidida.
Devemos mirar nos 20% que sabotam o sistema. O processo penal não está em crise porque falta norma. Está em crise porque existe um núcleo duro de práticas que violam de forma reiterada garantias estruturais. Prisão como castigo antecipado. Defesa sem amplitude. Prova contaminada. Juiz que julga o que ajudou a acusar.
Corrigir essas práticas não exige uma nova CF, nem um novo código. Exige compromisso com o que já está escrito. E coragem institucional para romper com a cultura do atalho, da eficácia a qualquer custo, da sentença que não pode ser revista.
No fim das contas, o problema do processo penal não está no todo, mas no que se repete nesse todo – no pequeno, mas letal, 20% que teima em sobreviver.
Assim como no seriado “Adolescência”, aparentemente, a tendência de respeito aos direitos e garantias fundamentais do Judiciário brasileiro ainda está na puberdade.
__________
1 KOCH, Richard. O princípio 80/20: Os segredos para conseguir mais com menos nos negócios e na vida. Ed. Gutenberg, 2015.
2 LOPES JUNIOR. Aury. Direito processual penal. 21 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024. p. 705
3 MELO E SILVA. Philipe Benoni.
Philipe Benoni Melo e Silva
Advogado Criminalista. Mestrando em políticas públicas, processo e controle penal. Presidente da ABRACRIM-DF no triênio 2023-2025