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Em 24 de setembro de 2024, o STJ, no REsp 2.151.939/RJ da relatoria da ministra Nancy Andrighi, flexibilizou de forma excepcional, o direito real de habitação do viúvo previsto no artigo 1831 do CC.
O art. 1831 do CC dispõe que:
Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.
Em que pese os civilistas estarem analisando a decisão do STJ à luz do direito privado, notadamente à luz do direito sucessório e do direito de família, peço vênia e ouso realizar essa análise à luz do conflito existente entre os direitos de moradia, propriedade e a dignidade da pessoa humana, sendo que, no juízo de ponderação feito brilhantemente pela Ministra Relatora Dra. Nancy Andrighi, prevaleceu a dignidade da pessoa humana e a garantia de um patrimônio mínimo existencial para os herdeiros.
No Brasil existe uma dificuldade imensa de se reconhecer o direito à moradia como direito autônomo, não atrelado ao direito de propriedade. Isso porque, todo o nosso ordenamento jurídico durante séculos esteve alicerçado na prevalência do interesse individual e na propriedade privada. Mesmo após a revolução copernicana do Direito em que os institutos, inclusive de direito privado, devem ser analisados com base na Constituição Federal e não sob a ótica individualista, constantemente são prolatadas decisões judiciais que privilegiam a propriedade em face de direitos menos prestigiados, como é o caso do direito à moradia.
Não foi, contudo, o caso da hipótese ora analisada.
A decisão priorizou o direito de propriedade dos herdeiros justificada pelo mesmo fundamento evocado para a garantia do direito à moradia, qual seja, a dignidade da pessoa humana e da garantia de um patrimônio mínimo existencial.
Existem poucos institutos no direito privado em que o direito à moradia prevalece sobre o direito de propriedade e um desses direitos é o direito real de habitação do cônjuge supérstite previsto no supracitado artigo 1831 do CC.
Observa-se com a simples leitura do artigo de lei, que o direito à habitação vidual do artigo 1831 é posto no CC e não demanda nenhum requisito específico. Inclusive independe do regime de bens, ou seja, mesmo que os cônjuges tenham sido casados sob o regime da separação absoluta, em sendo o imóvel habitado pelo viúvo no momento da abertura da sucessão e o único a se inventariar, ele teria a garantia de manter sua moradia no imóvel, sendo ou não herdeiro do bem, sem ter nenhuma condição ou custo para isso.
Mas qual seria a mens legis do instituto? Haveria Justiça com a aplicação indiscriminada do art. 1831 do CC para todas as situações, sem a observância da casuística que envolve as diversas situações fáticas?
Para o STJ, não.
A doutrina de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, citada no julgado, afirma que o direito real de habitação possui finalidade dúplice, ou seja, tem por objetivo garantir qualidade de vida ao cônjuge sobrevivente e de impedir que após o óbito, ele seja excluído do imóvel de residência do casal, garantindo um direito à moradia gratuito ao sobrevivente.
A Ministra Nancy Andrighi, quando da relatoria REsp 1.184.492/SE, julgado em 1/4/14, afirmou que a causa do direito real de habitação é tão somente “a solidariedade interna do grupo familiar que prevê recíprocas relações de ajuda”.
No próprio julgado em comento, a relatora afirma também que além de garantir o direito à moradia do viúvo, o instituto tem um viés humanitário, na medida em que serve também para imprimir um caráter de alento às consequências da morte do consorte, devido à existência de um vínculo afetivo e psicológico com o lar habitado pelo casal.
Assim, parece que esse direito visa garantir a dignidade humana e o mínimo existencial ao viúvo após a morte do seu cônjuge, por ser a parte mais vulnerável da situação. Como afirma a Ministra, é um direito de solidariedade, com a função precípua reduzir a vulnerabilidade da parte mais fraca que suportará as consequências da morte. Visa, então, equilibrar as partes desiguais e diferentemente de outros direitos reais de fruição, não permite que seu beneficiário use o bem a não ser para sua própria moradia. É um direito limitado e delimitado em seu uso, ou seja, exclusivamente para sua morada. É um direito vitalício e personalíssimo.
Nesse diapasão, conforme leciona Carlos Maximiliano, o direito deve ser interpretado inteligentemente, não de modo que prescreva inconveniências ou conclusões inconsistentes ou impossíveis, preferindo sempre a interpretação que resulte de forma mais eficiente.
Pois bem.
No caso concreto objeto do Acórdão a viúva não era a parte vulnerável da situação e sim os herdeiros.
A viúva gozava de pensão de alto valor deixada pelo de cujus que em vida era procurador Federal, possuía economias superiores a 400 mil reais, com rendimento mensal iguais aos Procuradores de carreira na ativa e recursos financeiros suficientes para residir em imóvel do mesmo padrão. Em contrapartida, os herdeiros estavam em situação vulnerável e, privados do único bem imóvel que possuíam, com filhos para sustentar e pagavam aluguéis para terem uma moradia. Detalhe: a ação já se arrastava por mais de 20 anos.
Maria Berenice Dias, citada no julgado, aponta que a doutrina critica a jurisprudência que defende a aplicação do art. 1831 do CC de forma indiscriminada. Sustenta que para a aplicação do instituto, há uma necessidade de se realizar uma ponderação entre o direito de moradia do sobrevivente e o direito de propriedade dos herdeiros, pois, se não realizada essa ponderação em cada caso concreto, poderá ocorrer sérios prejuízos de um lado ou de outro.
A ponderação de direitos é uma prática de interpretação que tem seus fundamentos teóricos na busca pelo equilíbrio e harmonização entre princípios conflitantes. Essa abordagem considera que nenhum direito é absoluto, podendo ser restringido em situações excepcionais. Dessa forma, a ponderação se baseia na ideia de proporcionalidade para resolver colisões de direitos, buscando uma solução justa e equitativa que leve em conta as circunstâncias específicas de cada caso.
E foi exatamente isso o que ocorreu no julgado. Partindo-se da mens legis do direito real de habitação, analisando o caso concreto e fazendo um juízo de ponderação entre o direito à moradia da viúva e o direito de propriedade dos herdeiros, venceu a dignidade dos herdeiros como medida de Justiça. Os herdeiros eram os vulneráveis da situação e as condições da viúva não justificavam a aplicação irrestrita do art. 1831 do CC.
Será esse o futuro do instituto? Provavelmente sim.
Isso porque a decisão do STJ coaduna com a nova redação do art. 1831 proposta pelo anteprojeto de reforma do CC que assim estabelece:
Art. 1.831. Ao cônjuge ou ao convivente sobrevivente que residia com o autor da herança ao tempo de sua morte, será assegurado, qualquer que seja o regime de bens e sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação, relativamente ao imóvel que era destinado à moradia da família, desde que seja o único bem a inventariar.
§ 1º Se ao tempo da morte, viviam juntamente com o casal descendentes incapazes ou com deficiência, bem como ascendentes vulneráveis ou, ainda, as pessoas referidas no art. 1.831-A caput e seus parágrafos deste Código, o direito de habitação há de ser compartilhado por todos.
§ 2º Cessa o direito quando qualquer um dos titulares do direito à habitação tiver renda ou patrimônio suficiente para manter sua respectiva moradia, ou quando constituir nova família.
A nova redação praticamente repete os dizeres do caput do atual art. 1831 do CC, no entanto, introduz dois parágrafos. O primeiro expandindo o direito a outras pessoas vulneráveis que habitavam com o casal ao tempo da morte. O segundo imprimindo regras à concessão do direito, muito semelhantes inclusive à solução dada ao presente julgado.
Assim, aparentemente, o delineamento futuro do direito real de habitação será este. Um direito que cumpre a sua função social, qual seja: Conferir dignidade a quem precisa.
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Superior Tribunal de Justiça. Acórdão RESP 2.151.939/RJ. Relatório ministra Nancy Andrighi. Brasília, DF: STJ; Julgado em 24/9/24.
Brasil. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o CC. Diário Ofi-cial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1- 74, 11 jan. 2002.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/02/L10406.htm. Acesso em: 06/10/24.
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.184.492/SE Relatora Ministra Nancy Andrighi julgado em 1/1/14.
Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011. p. 135-136.
Roberta Castilho Andrade Lopes
Doutora e Mestra pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista da Magistratura. Parecerista em Licitações. Procuradora-Geral do Município de Mauá.