Caso Cerpasa: Limites e abusos no compartilhamento de dados do COAF   Migalhas
Categories:

Caso Cerpasa: Limites e abusos no compartilhamento de dados do COAF – Migalhas

CompartilharComentarSiga-nos noGoogle News A A

O compartilhamento de dados financeiros pelo COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras é um tema que tem despertado intensos debates na atualidade. No centro dessa discussão, a prática do compartilhamento informal, sem autorização judicial, que levanta preocupações sobre sua compatibilidade com a CF/88, especialmente em relação aos princípios fundamentais que regem o devido processo legal e a proteção ao sigilo bancário.

Este artigo aborda a questão a partir do caso Cerpasa, que envolve uma investigação por lavagem de capital e sonegação fiscal no valor de R$ 600 milhões. O caso serve como exemplo para avaliar se a prática é lícita, se há limites e os impactos jurídicos do compartilhamento de RIFs – Relatórios de Inteligência Financeira pelo COAF. A questão central que guia o estudo é a seguinte: o compartilhamento informal de dados financeiros pelo COAF viola a normatividade do sistema jurídico brasileiro?

1. O caso Cerpasa e o controvertido compartilhamento informal de dados

A Cerpa Cervejaria Paraense, fabricante de bebidas do Norte do Brasil, foi investigada por suspeitas de lavagem de capital e de sonegação fiscal, gerando, supostamente, prejuízo de R$ 600 milhões ao erário. Um fator relevante na investigação foi a utilização de RIFs – Relatórios de Inteligência Financeira pelo COAF, fornecidos diretamente à polícia e ao Ministério Público, sem autorização judicial.

A Cerpasa contestou a legalidade desse compartilhamento, alegando violação ao sigilo bancário (art. 5º, XII, CF) e ao devido processo legal (art. 5º, LIV, CF). Inicialmente, a 6ª Turma do E. STJ acolheu o recurso da empresa, declarando ilícitos os relatórios financeiros fornecidos sem autorização judicial. Entendeu-se, há época, que a prática desrespeitava a reserva de jurisdição e comprometia as garantias processuais.

Irresignado, o MPPA – Ministério Público do Estado do Pará recorreu ao STF por meio da reclamação constitucional (61.944), argumentando que a decisão do Tribunal da Cidadania afrontava o Tema 990, com repercussão geral, o qual reconhece a constitucionalidade do compartilhamento de informações pelo COAF com autoridades de persecução penal, desde que respeitados critérios formais e o controle jurisdicional posterior. In verbis: “[p]ossibilidade de compartilhamento com o Ministério Público, para fins penais, dos dados bancários e fiscais do contribuinte, obtidos pela Receita Federal no legítimo exercício de seu dever de fiscalizar, sem autorização prévia do Poder Judiciário”.

A reclamação, cujo relator é o Exmo. ministro Cristiano Zanin, cassou a decisão do STJ, reafirmando a constitucionalidade do compartilhamento de dados financeiros pelo COAF. O ministro enfatizou que a comunicação de informações ocorreu de modo formal, via Sistema Eletrônico de Intercâmbio do COAF, com delimitação temporal e respeito ao sigilo. Adicionalmente, que o COAF é um órgão administrativo de inteligência financeira, cuja função é consolidar informações relevantes para investigações criminais, mas que, ponderou, não produz provas judiciais. O relator advertiu que exigir autorização judicial prévia para todas as comunicações comprometeria a eficácia de sua atuação no combate à lavagem de dinheiro, alinhada às normas internacionais, como a recomendação 29 do GAFI – Grupo de Ação Financeira Internacional.

O ministro também esclareceu que o Tema 990 permite o compartilhamento de dados sem autorização judicial, desde que sejam respeitados os seguintes critérios: (i) formalidade: as comunicações devem ser documentadas e rastreáveis; (ii) sigilo: deve-se assegurar que as informações sejam utilizadas apenas para os fins investigativos autorizados; e (iii) controle jurisdicional posterior: embora não seja exigida autorização prévia, a legalidade do compartilhamento deve estar sujeita à revisão judicial.

2. Os principais argumentos em torno do compartilhamento informal de dados

Utilizando o caso Cerpasa como partida, é possível identificar argumentos que justificam o compartilhamento informal quanto aqueles que questionam sua validade no ordenamento jurídico brasileiro.

Os defensores do compartilhamento informal podem destacar a sua imprescindibilidade no enfrentamento de crimes financeiros de alta complexidade. O art. 15 da lei 9.613/98, a saber, autoriza o COAF a compartilhar informações com as autoridades de persecução penal, sempre que houver indícios de irregularidades financeiras. Em reforço, o Tema 990, com repercussão geral, reforça essa prerrogativa, considerando que o sigilo e o controle posterior oferecem garantias suficientes para evitar abusos. Além desses argumentos, que a celeridade no acesso às informações seria fundamental para impedir que recursos ilícitos sejam ocultados ou transferidos, frustrando as investigações.

Por outro lado, os críticos poderiam asseverar que a prática informal compromete direitos fundamentais, tais como o sigilo bancário e o devido processo legal. Que o compartilhamento direto, sem autorização judicial, pode gerar abusos e interpretações acusatórias precipitadas, especialmente quando as informações não levam em consideração o contexto ao qual está inserida. Outra preocupação que pode surgir é o risco de “fishing expeditions”, em que dados financeiros são utilizados de forma genérica para buscar evidências incriminatórias.

3. Preocupação com excessos e abusos dos órgãos de controle

O caso Cerpasa ilustra como o compartilhamento informal pode tanto contribuir para a eficiência das investigações quanto suscitar questões sobre sua compatibilidade com as garantias constitucionais. Embora o STF tenha validado o procedimento no caso concreto, a decisão foi baseada em condições específicas, como o uso do Sistema Eletrônico de Intercâmbio do COAF, que garantiu formalidade e delimitação.

Não obstante, a prática indiscriminada do compartilhamento informal, sem regulamentação, abre margem para interpretações divergentes e conflitos jurisprudenciais. O caso ressalta a necessidade de um marco regulatório mais claro, que assegure o equilíbrio entre eficiência investigativa e proteção de direitos fundamentais.

Nesse contexto, incorporam-se os valores consagrados na LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, sobretudo com as alterações promovidas pela lei 13.655/18, no sentido de prestigiar a segurança jurídica, a previsibilidade e a proporcionalidade nas decisões que envolvem o compartilhamento informal de dados financeiros pelo COAF. A LINDB oferece um arcabouço para orientar a atuação dos diversos órgãos de controle, além de prevenir excessos investigativos, contribuindo para a preservação de direitos fundamentais.

O art. 20, por exemplo, estabelece que as decisões, tanto na esfera administrativa quanto na judicial, devem considerar as consequências práticas, evitando que se fundamentem em valores jurídicos abstratos. Aplicado ao caso, isso significa que as decisões sobre o compartilhamento de informações financeiras pelo COAF devem equilibrar a necessidade de eficiência no enfrentamento a crimes financeiros com a proteção de direitos constitucionais, como o sigilo bancário e o devido processo legal. A flexibilização dessas garantias pode gerar um cenário de insegurança jurídica, comprometendo a confiança no sistema.

Outro dispositivo relevante é o art. 22, o qual determina que, na interpretação de normas sobre gestão pública, sejam considerados os obstáculos e as dificuldades reais enfrentados pelos gestores. Essa disposição é especialmente pertinente para o COAF, que opera em um cenário de alta complexidade no enfrentamento à lavagem de capitais e outros delitos financeiros. Reconhece-se que a celeridade no compartilhamento de dados é uma ferramenta importante nesse enfrentamento. Não obstante, a LINDB alerta que essas dificuldades práticas não podem ser utilizadas como justificativa para “atropelar” os direitos fundamentais dos investigados, reforçando a necessidade de limites claros para evitar abusos.

Além desses, o art. 30, o qual destaca a importância da segurança jurídica e da previsibilidade na atuação das autoridades públicas, crucial no caso do COAF, cuja função de inteligência financeira exige regulamentação clara para prevenir interpretações divergentes e decisões arbitrárias. A ausência de parâmetros normativos específicos sobre o compartilhamento informal de dados financeiros contribui para um ambiente de incerteza jurídica, que não só prejudica a efetividade das investigações, mas também compromete os direitos individuais.

A aplicação desses dispositivos da LINDB ao debate sobre o compartilhamento de dados pelo COAF reforça a necessidade de um marco regulatório que combine eficiência investigativa e proteção de direitos fundamentais. O equilíbrio preconizado pela LINDB é essencial para legitimar a atuação dos órgãos de controle, evitando tanto o voluntarismo quanto a paralisia decorrentes de lacunas normativas. No contexto do caso Cerpasa, a adoção desses princípios poderia fornecer diretrizes mais claras e justas, preservando a confiança no sistema jurídico e assegurando que o combate aos crimes financeiros seja realizado de maneira proporcional e legítima.

4. Considerações finais

O caso Cerpasa evidencia como o compartilhamento informal de dados financeiros pelo COAF é um mecanismo que precisa ser analisado sob inúmeras perspectivas, equilibrando a eficiência investigativa com a proteção de direitos fundamentais. O STF, que reforçou a constitucionalidade do procedimento, ressaltou que, desde que respeitados os critérios de formalidade, sigilo e controle judicial posterior, a prática pode ser legítima. Contudo, a (suposta) legitimação não pode ser um “cheque em branco” para os órgãos de controle.

A aplicação dos valores previstos na LINDB oferece um caminho claro e seguro a seguir e orientar o debate. Os dispositivos supramencionados destacam a necessidade de decisões fundamentadas, que considerem as consequências práticas, respeitem a segurança jurídica e reconheçam os desafios enfrentados pelos gestores de recursos financeiros. As metanormas apresentadas são fundamentais para garantir que o compartilhamento de informações financeiras seja conduzido de maneira proporcional, equânime e dentro dos limites constitucionais.

O compartilhamento informal, ainda que necessário no enfrentamento de delitos financeiros, exige limites claros e definidos, uma vez que a ausência de parâmetros gera incerteza e abusos, o que inclui o risco de se banalizar o acesso a dados financeiros sensíveis, comprometendo a confiança no sistema jurídico e financeiro. Sem esses, serão colocados na mesma berlinda o criminoso e o gestor com desorganização financeira. Por esta perspectiva e advertindo sobre esses riscos, o controle jurisdicional não é obstáculo, mas garantia de que as investigações serão conduzidas de maneira proporcional e justa.

_________

1 BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro [livro eletrônico]: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/1998, com alterações da Lei 12.683/2012. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. ePub. 41. ed. em e-book baseada na 5. ed. impressa. Disponível em: https://next-proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/99942511/v5. Acesso em: 5 dez. 2024.

2 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

3 BRASIL. Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 4 mar. 1998.

4 GAFI. Recomendação 29. Disponível em: https://www.fatf-gafi.org. Acesso em: 5 dez. 2024.

5 NERY, Nina. O compartilhamento de dados financeiros no sistema antilavagem de dinheiro brasileiro [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024. (Coleção Sistema de Direito e Processo Penal Contemporâneo / coordenador Guilherme Madeira Dezem). ePub. 1. ed. em e-book baseada na 1. ed. impressa. Disponível em: https://next-proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/356851089/v1. Acesso em: 5 dez. 2024.

6 STF. Reclamação 61.944. Relator: Ministro Cristiano Zanin. Supremo Tribunal Federal, Brasília, 2024.

7 STJ. AgRg no RHC 125463/RJ. Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Superior Tribunal de Justiça, Brasília, 2021.

Wenner Melo

Wenner Melo

Advogado. Publicista. Mestrando em Direito. Ex-Procurador-Geral do Município. Graduadoem Comércio Exterior. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional (ABDPC)

Sigifroi Moreno

Sigifroi Moreno

Advogado. Especialista em Direito Processual pela UFSC. Presidente da OAB-PI 2010/2012. Conselheiro Federal da OAB 2013/2015 e 2025/2027.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *