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1. Introdução
A lei 13.467/17, conhecida como reforma trabalhista, promoveu profundas alterações na CLT – Consolidação das Leis do Trabalho, incluindo a introdução do §2º do art. 468, que trata da reversão do empregado ao cargo efetivo e da consequente perda da gratificação de função. O dispositivo prevê expressamente que a reversão, com ou sem justo motivo, não assegura ao empregado o direito à incorporação da gratificação correspondente.
A aplicação dessa nova regra gerou intensos debates jurídicos, em especial no que se refere à sua incidência sobre contratos de trabalho que já estavam em vigor antes da reforma. A principal questão levantada diz respeito à possibilidade de aplicação retroativa do dispositivo, afetando empregados que, antes da vigência da reforma, já haviam completado dez anos no exercício ininterrupto de função de confiança.
Diante desse contexto, o presente estudo analisa a divergência jurisprudencial sobre o tema, explorando os fundamentos utilizados nas decisões favoráveis e contrárias à retroatividade da norma, bem como sua compatibilidade com princípios constitucionais e trabalhistas, em especial o direito adquirido e a segurança jurídica.
2. A estabilidade financeira e a reforma trabalhista
A jurisprudência trabalhista anterior à reforma trabalhista reconhecia o direito à incorporação da gratificação de função para empregados que a percebiam por mais de dez anos, com base na súmula 372 do TST. O entendimento consolidado previa que, uma vez revertido ao cargo efetivo sem justo motivo, o empregado não poderia sofrer a supressão da gratificação, em razão do princípio da estabilidade financeira.
Com a inclusão do §2º do art. 468 da CLT, a reforma trabalhista passou a vedar expressamente a incorporação da gratificação de função, alterando a segurança jurídica até então conferida pela jurisprudência dominante. No entanto, a ausência de previsão expressa quanto à aplicação da norma a contratos em curso levou à existência de interpretações divergentes.
3. A divergência jurisprudencial
3.1. O entendimento favorável à retroatividade
Determinadas decisões judiciais sustentam que a lei 13.467/17 tem aplicação imediata e abrange relações jurídicas já constituídas, independentemente do tempo de percepção da gratificação. A fundamentação utilizada baseia-se no princípio da legalidade e na revogação tácita da súmula 372 do TST pela nova legislação.
No TRT da 10ª região, algumas decisões passaram a aplicar a tese da limitação do cálculo da média da gratificação de função até 10/11/17. Esse entendimento, contudo, não nasceu na jurisdição regional, mas se fundamentou em precedentes do TST, que já haviam adotado a interpretação de que a reforma trabalhista afastou expressamente o direito à incorporação da gratificação de função.
Entre os julgados do TST que serviram de base para essa tese, destacam-se o recurso de revista 10583-38.2019.5.03.0012, relatado pelo ministro Cláudio Mascarenhas Brandão, e o recurso ordinário trabalhista 74326720195150000, da subseção II especializada em dissídios individuais, relatado pelo ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte. Em ambos os casos, ficou consignado que a apuração da média da gratificação de função deveria ser limitada até 10/11/17, data imediatamente anterior à vigência da reforma trabalhista, sem que houvesse supressão do direito à gratificação em si.
3.2. O entendimento favorável à irretroatividade
Em contrapartida, prevalece no TST e em parte dos TRTs o entendimento de que a reforma trabalhista não pode ser aplicada retroativamente para prejudicar empregados que já haviam preenchido os requisitos da incorporação antes de sua vigência. O fundamento central desse posicionamento reside no princípio da irretroatividade das leis, insculpido no art. 5º, inciso XXXVI, da CF/88, que resguarda o direito adquirido e impede a aplicação de normas mais gravosas a contratos em curso.
No TRT da 10ª região, há ampla jurisprudência consolidando esse entendimento. O desembargador Brasilino Santos Ramos, com brilhantismo, fundamentou diversas decisões da 3ª turma ressaltando a aplicação da súmula 51 do TST, a qual protege normas internas mais benéficas ao trabalhador, impedindo sua alteração unilateral para pior. Na 2ª turma, a desembargadora Elke Doris reafirmou a necessidade de resguardar a estabilidade financeira dos empregados, destacando que a reforma trabalhista não poderia retroagir para modificar uma condição já consolidada. O desembargador João Amílcar, com seu habitual rigor técnico, também enfatizou que a irretroatividade é um princípio fundamental do Direito, devendo ser observado para evitar retrocessos sociais. Da mesma forma, o desembargador Foltran contribuiu significativamente para a jurisprudência ao reforçar a interpretação constitucionalmente adequada da proteção ao direito adquirido, sustentando que qualquer alteração na remuneração deve respeitar as garantias historicamente asseguradas aos trabalhadores.
No âmbito do TST, a tese da irretroatividade da reforma trabalhista foi amplamente reafirmada, especialmente na SBDI-I – Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, órgão responsável por uniformizar a jurisprudência trabalhista. As decisões da SBDI-I consolidaram o entendimento de que o §2º do art. 468 da CLT não pode alcançar relações jurídicas já consolidadas antes da reforma.
Entre os precedentes mais relevantes, destaca-se o recurso de embargos em recurso de revista 22069-20.2015.5.04.0404, relatado pelo ministro Alberto Bresciani, que reafirmou que legislação superveniente não pode restringir direitos já incorporados ao contrato de trabalho. No recurso de embargos em embargos de declaração em recurso de revista 100516-45.2018.5.01.0066, o ministro Cláudio Mascarenhas Brandão reforçou que a estabilidade econômica do trabalhador deve ser preservada em face de alterações legislativas.
Merece especial destaque o julgamento do recurso de revista 20877-28.2019.5.04.0011, sob relatoria do ministro Augusto César, que reafirmou a vigência da súmula 372 do TST para situações anteriores à reforma trabalhista, consolidando a impossibilidade de aplicação retroativa do §2º do art. 468 da CLT. O ministro Pimenta, em voto magistralmente fundamentado, destacou a incompatibilidade entre a aplicação retroativa do dispositivo e os princípios constitucionais da segurança jurídica, do direito adquirido e da irredutibilidade salarial, ressaltando que a intenção do legislador nunca foi a de atingir situações jurídicas já consolidadas.
A SBDI-I tem reforçado reiteradamente esse entendimento, garantindo que a reforma trabalhista não pode impactar direitos adquiridos anteriormente à sua vigência. Ao consolidar essa interpretação, a SBDI-I mantém a estabilidade do entendimento jurisprudencial e assegura a proteção ao trabalhador, evitando retrocessos sociais e garantindo a segurança jurídica necessária para relações de trabalho duradouras.
4. A competência da SBDI-I e da SBDI-II na regulação da matéria
A SBDI-I – Subseção I Especializada em Dissídios Individuais e a SBDI-II – Subseção II Especializada em Dissídios Individuais desempenham papéis distintos dentro da estrutura do TST, sendo responsáveis por diferentes aspectos da uniformização jurisprudencial e da regulação de temas controvertidos no âmbito trabalhista.
A SBDI-I é a instância máxima do TST para a uniformização da jurisprudência trabalhista, sendo responsável por consolidar entendimentos sobre questões controvertidas nos dissídios individuais. Como guardiã da interpretação uniforme da legislação trabalhista, cabe a essa Subseção consolidar teses que orientam os julgamentos das turmas e evitar a multiplicação de entendimentos conflitantes.
Por outro lado, a SBDI-II tem competência para analisar ações rescisórias, mandados de segurança e habeas corpus, além de julgar incidentes de uniformização de jurisprudência quando há divergência entre órgãos do TST ou entre TRT. Embora tenha papel fundamental na revisão de decisões, seu foco principal está na correção de eventuais violações processuais e materiais graves, sem necessariamente consolidar teses com a mesma amplitude da SBDI-I.
Diante dessas atribuições, a matéria relacionada à irretroatividade da reforma trabalhista e à incorporação da gratificação de função encontra terreno mais sólido na SBDI-I, visto que se trata de um tema de interpretação jurisprudencial consolidada e não de revisão excepcional de julgados específicos. A atuação da SBDI-I na uniformização do entendimento acerca da não aplicação retroativa da norma reflete sua função primordial dentro da estrutura do TST.
5. Conclusão
A análise do tema evidencia que a aplicação retroativa do §2º do art. 468 da CLT afronta princípios fundamentais do Direito do Trabalho e do Direito Constitucional. A vedação à retroatividade prejudicial das normas jurídicas encontra respaldo no art. 5º, inciso XXXVI, da CF/88, garantindo a segurança jurídica e a proteção ao direito adquirido. A interpretação conferida pela jurisprudência predominante no TST reforça a impossibilidade de aplicação da reforma trabalhista a contratos de trabalho que já haviam consolidado a incorporação da gratificação de função antes de sua vigência.
Os julgados do TST, em especial os proferidos pela SBDI-I – Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, consolidam o entendimento de que o novo dispositivo não pode retroagir para modificar situações jurídicas já estabilizadas. As decisões reiteradas dos ministros Augusto César, Alberto Bresciani, Cláudio Mascarenhas Brandão e Pimenta reforçam que a incorporação da gratificação de função deve ser preservada sempre que o tempo mínimo de dez anos de exercício da função tiver sido completado antes da vigência da reforma trabalhista. Esse entendimento é sustentado pela súmula 372 do TST, que permanece aplicável aos contratos em curso antes da nova legislação.
No âmbito do TRT da 10ª região, a convergência da jurisprudência das turmas demonstra a prevalência da tese da irretroatividade. O desembargador Brasilino Santos Ramos fundamentou com precisão a necessidade de aplicar a súmula 51 do TST, que veda a supressão de vantagens incorporadas ao contrato de trabalho. Da mesma forma, a desembargadora Elke Doris, o desembargador João Amílcar e o desembargador Foltran enfatizaram a impossibilidade de se aplicar retroativamente uma norma que impacta diretamente a estabilidade financeira dos trabalhadores, protegendo-os contra alterações contratuais prejudiciais.
A interpretação mais coerente com os princípios estruturantes do Direito do Trabalho é aquela que resguarda a segurança jurídica e o direito adquirido, garantindo que a estabilidade financeira dos empregados não seja subitamente alterada por mudanças legislativas posteriores à consolidação do benefício. Assim, a jurisprudência majoritária reafirma que a incorporação da gratificação de função, quando preenchidos os requisitos temporais antes da reforma trabalhista, deve ser preservada, impedindo-se a aplicação retroativa do §2º do art. 468 da CLT.
Dessa forma, a aplicação retroativa desse dispositivo revela-se incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro, sendo afastada pelos tribunais por representar violação aos princípios da irretroatividade da lei, da estabilidade das relações jurídicas e da proteção ao trabalhador.
A análise jurisprudencial conduzida demonstra que a reforma trabalhista não pode retroagir para atingir empregados que já haviam completado dez anos de função de confiança antes de sua vigência. A retroatividade do §2º do art. 468 da CLT violaria o princípio da segurança jurídica, o direito adquirido e a proteção ao trabalhador garantida constitucionalmente.
Dessa forma, a tendência majoritária na jurisprudência trabalhista é no sentido de afastar a aplicação retroativa da norma, garantindo que a incorporação da gratificação seja respeitada conforme os parâmetros vigentes antes da reforma trabalhista.
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1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br.
2 BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em: https://www.planalto.gov.br.
3 BRASIL. Lei nº 13.467/2017 (Reforma Trabalhista). Disponível em: https://www.planalto.gov.br.
4 TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Jurisprudência Consolidada. Disponível em: https://www.tst.jus.br.
5 SOUZA, Fabiano Coelho de. A Reforma Trabalhista: Tramitação, Vacatio Legis e Direito Intertemporal. Revista de Direito do Trabalho, v. XX, n. XX, 2018.
6 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 20. ed. São Paulo: LTr, 2022.
7 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 44. ed. São Paulo: Atlas, 2023.
8 GIGLIO, Wagner D. Comentários à Reforma Trabalhista. São Paulo: Saraiva, 2019.
Gabriel de Sousa Pires
Advogado, ex-Conselheiro Seccional e atual membro da Comissão de Seleção da OAB-DF. Especialista em Direito Contratual, Imobiliário e Empresarial. Sócio da J Pires Advocacia & Consultoria