Torcedor ou consumidor? ET x CDC – divergências, convergências e incongruências nas legislações.
Washington Rodrigues de Oliveira*
É quase unânime a posição de nossos juristas e doutrinadores de que o Código de Defesa do Consumidor – CDC, estatuído pela Lei 8.078 de 1990 é um dos dispositivos legais mais inovadores da legislação brasileira. Numa mesma lei criou-se mecanismos de vanguarda em matéria legal, processual e penal.
Apenas para lembrança, o texto inicial foi elaborado, após exaustivos trabalhos, por uma comissão composta por juristas do quilate de Ada Pelegrini Grinover, Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, Daniel Roberto Fink, José Geraldo Brito Filomeno, Kazuo Watanabe, Nelson Nery Júnior e Zelmo Denari.
Por outro lado, seus críticos são quase uníssonos em afirmar que alguns de seus dispositivos, têm sua aplicação limitada por alguns fatores, tais como: falta de manejo da ação civil pública pelos autores legitimados, confusão com outros regulamentos e situações legais, e por fim, e talvez o mais importante e derivado dos primeiros, a inaplicabilidade de seus dispositivos por parte dos julgadores.
É comum que os defensores de uma das partes, notadamente o fornecedor dos produtos ou dos serviços, queira fazer crer que a situação em tela não é uma relação de consumo. Para isso, dentre outros argumentos assinalam que a relação sub-judice é uma relação civil ou comercial, ou que a matéria esta disciplinada por outro ordenamento, ou que o Código interfere numa situação que carecia, ou carece, de uma regulamentação.
Tal posição, muitas das vezes é abraçada pelo julgador, que tende a aplicar e amparar seu julgado no Código Civil ou em legislações esparsas, para a infelicidade do que busca a tutela jurisdicional.
Por outro lado, e talvez um dos fatores que ainda maculam a aplicação da Lei 8.078/90 é a sua pecha paternalista, decorrente de sua própria nomenclatura. O objetivo do Código – e isso se dá pela leitura atenta de seus artigos e incisos – não é, pura e simplesmente, a proteção do consumidor. É sim a proteção da relação de consumo, advinda das mais diversas situações. Sob esse prisma, talvez a melhor titulação seria a de Código das Relações de Consumo.
Por outro lado, analisemos a criação do Estatuto do Torcedor – ET.
As críticas contra o ET, derivam primordialmente de sua concepção. Elaborada com rancor dado o maniqueísmo vigente de que todos os dirigentes são desonestos ou corruptos, tentou criar através de uma lei que responsabiliza-se o dirigente sem prejuízo da continuidade da entidade.
E aqui, fica uma crítica direta à necessidade governamental em estabelecer leis para situações específicas. Perdem-se as bases principiológicas e comportamentais do ser humano, para elencar ao mesmo situações que limitem sua atuação ética, legal e moral, através de um ordenamento legal.
Cria-se um sentimento de que apenas o que é ilegal não é permitido. Ética e moral, passam a ser algo não coletivo, mas pessoal, e portanto aceitável, mesmo que repugnante, veja-se o exemplo do lixo jogado às toneladas nas calçadas e ruas pelos transeuntes. O lixo só é coibido – pelo senso comum – quando jogado pelas janelas dos carros, visto que legalmente proibido.
Passado, o desabafo filosófico, voltemos ao objeto do presente artigo.
Assim, e antes de propormos a comparação entre este instituto e o Estatuto do Torcedor, é necessário se frisar em letras garrafais, que toda a situação hipotética que poderia advir da relação entre torcedor/clube – e vice-versa – já era protegida pelo manto do Código de Defesa do Consumidor.
Há que se ressaltar que o torcedor já tinha um regramento legal que disciplinavam sua relação com o clube e/ou a entidade promotora do evento, bastava apenas que as entidades legitimadas promovessem as ações coletivas competentes para a defesa dos interesses do consumidor, posto que o artigo 110 do Código de Defesa do Consumidor. incluiu no rol de direitos protegidos pela lei 7.347 de 1985, o inciso que assim dispõe: “IV – a qualquer outro interesse difuso ou coletivo” . Ou seja, sendo repetitivo, posto que o texto não carece de interpretação: a ação civil pública pode ter como objeto todo e qualquer interesse difuso ou coletivo, seja ele desportivo ou consumerista.
Desse modo, poderia o Ministério Público e as entidades legitimadas propor, com base no C.D.C., medidas inibitórias e/ou condenatórias que tivessem como base o desporto nacional, o que, aliás, foi feito em caso de grande repercussão nacional; que foi a ação proposta em face da Confederação Brasileira de Futebol, que acabou alçando a Sociedade Esportiva do Gama de volta a elite do futebol nacional. Ressalte-se, mais uma vez, proposta com base no Código de Defesa do Consumidor.
Confrontar ambos os ordenamentos, e tentar enumerar situações que já estavam abrangidas, pelo C.D.C. seria extenuante, mas peguemos dois exemplos com base no código no artigo 6º deste diploma:
– falta de regras claras no campeonato – inciso II e III;
– indenização por impossibilidade de ingresso no recinto esportivo quando o ingresso já estivesse comprado, por lotação no estádio – inciso VI;
Vê-se, portanto, que muito do que já estava previsto no C.D.C. acabou sendo repisado pelo Estatuto do Torcedor como se houvesse alguma inovação. Pelo contrário, acabou dando aos clubes o direito, legítimo, de contestarem o tratamento desigual aos iguais, haja vista que exigem-se que os estádios tenham lugares numerados, mas não se exige o mesmo dos cinemas e teatros, e ai se extrai outra indagação: em qual ponto são os clubes de futebol e os cinemas desiguais, para serem tratados desigualmente?
Em uma análise perfunctória do Estatuto do Torcedor constata-se que sua concepção poderia e deveria ser motivo de uma portaria do Ministério do Esporte, disciplinando a organização do desporto nacional – nos limites da sua competência. Lembre-se, de que a maioria dos dispositivos criados pelo Estatuto do Torcedor, já estavam contemplados pelo antigo Código Brasileiro Disciplinar de Futebol, lembre-se: estatuído através de portaria ministerial.
Por outro lado, acabou delegando aos clubes, obrigações do Estado, tais como: acesso a transporte seguro e organizado, inciso I do artigo 26 do ET; meio de transporte, ainda que oneroso, para condução de idosos, crianças e pessoas portadoras de deficiência física aos estádios, partindo de locais de fácil acesso, previamente determinados, inciso II do artigo 27 do ET.
Como disse o Presidente Lula no discurso de sanção do Estatuto do Torcedor: “No Brasil, há leis que pegam, e leis que não pegam.” Tenho a convicção de que o ET tem tudo para entrar nesse rol.
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Advogado*
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Atualizado em: 29/1/2004 10:53