O Código Civil e a moral sexual
Rodrigo da Cunha Pereira*
O Novo Código Civil Brasileiro, que entrou em vigor no último dia 11 de janeiro, é o Estatuto que regerá as relações civis do século XXI. Nele estão estabelecidas as regras sobre empresas, contratos, posse e propriedade, responsabilidade civil, herança, família. A parte que sofreu maior alteração, em relação ao código anterior, sem dúvida foi a da família.
As mudanças sobre a família estão assentadas em três eixos, cujas bases estavam na Constituição da República de 1988: o Estado legitimou todos os filhos, acabando com a designação e discriminação entre legítimos e ilegítimos; homens e mulheres são iguais perante a lei; e o casamento não é mais a única forma de legitimar famílias, pois a União Estável passou a integrar o rol das famílias legítimas.
Não são poucas as mudanças. É que exatamente sobre elas permeiam concepções morais, e aí se pretendeu traduzir toda a evolução das relações familiares e de suas representações sociais, de acordo com uma nova ordem mundial globalizada. Não é fácil fazer uma completa tradução dessas relações através de um texto normativo.
O NCCB fez várias evoluções. Não fosse ele, casos como o da tutela do filho da Cássia Eller arriscaria cair nas mãos do avô, se o julgador seguisse à risca a literalidade da lei. Não fosse ele, juízes apegados à rigidez e engessamento da Lei continuariam anulando casamentos porque a mulher não era mais virgem, e mulheres perderiam a guarda de filho por terem tido uma relação extraconjugal, mesmo que fossem boas mães. Enfim, foram muitos os benefícios e avanços.
Segundo FREUD, as relações de família são as mais intrincadas e complexas. Por isso mesmo há aí tanta eclosão de conflitos e é necessário organizar juridicamente essas relações. Mas não se pode deixar passar desapercebido que essas relações são permeadas de valores e concepções morais que traduzem aquilo que FREUD chamou de Moral Sexual Civilizatória.
Nos processos judiciais de família, a discussão, quando não é econômica, é em torno dessas concepções morais. Por exemplo: a única defesa possível nos processos de investigação de paternidade é que a mãe teve relações sexuais com vários homens; anulação de casamento gira sempre em torno de frigidez, impotência, homossexualidade, entre outras questões ligadas à sexualidade; as separações litigiosas requeridas por homens estão sempre discutindo o adultério da mulher; a polêmica sobre guarda de filho acaba sendo uma discussão de quem tem melhores “condições morais” para criá-los e educá-los; destituição de pátrio poder, agora denominada poder familiar, está sempre vinculada a um abuso sexual.
Como se vê, o fio condutor da organização jurídica sobre a família e os restos dos amor que vão parar no Judiciário é sempre econômico e moral. Em nome dessa moral, muita injustiça já se fez: as mulheres foram excluídas das eleições até 1934 e taxadas de relativamente incapazes até 1962; não se permitia o registro dos filhos havidos fora do casamento em nome da moral e dos bons costumes. Mulher honesta era aquela que tinha sua sexualidade controlada pelo pai ou pelo marido. O NCCB suprimiu essa expressão. A partir de agora mulher honesta, assim como o homem, é aquela que cumpre suas obrigações civis, a que paga suas contas, honra seus compromissos.
Provavelmente por um golpe do inconsciente, o NCCB, através do art.1520, continua acreditando que o casamento pode salvar a honra da mulher. Esse artigo, ao abrir uma exceção para autorizar o casamento da menor de dezesseis anos, em caso de gravidez, revela esse fio moral condutor. Ora, o grande avanço das mulheres foi exatamente a conquista de um lugar de sujeito e a compreensão de que sua honra não está atrelada à sua virgindade.
Consciente ou inconscientemente o NCCB acabou valorizando o casamento e desvalorizando a união estável. Essa valorização moral revela-se também, quando no artigo 1829 atribui condição de herdeiro necessário ao cônjuge, ao passo que na união estável haverá herança somente se um dos companheiros tiver contribuído para a aquisição dos bens do casal. Com isso, além do companheiro ter que dividir a herança com primos, sobrinhos, netos, ou tios-avós do falecido, haverá situações em que o herdeiro será o município e não o(a) companheiro(a).
Não há dúvidas de que o casamento foi, é e continuará sendo a forma paradigmática de constituição de família. Mas isto não significa, e nem autoriza dizer, que é superior, e união estável uma família de segunda classe como está colocado no NCCB. Essa desvalorização da união estável é reveladora dessa moral sexual civilizatória. Não estaria, com isto, o NCCB repetindo a mesma injustiça histórica das exclusões, como foi com a ilegitimação de filhos e incapacitação e assujeitamento jurídico das mulheres aos homens?
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*Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, Advogado, Prof. da PUC Minas
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Atualizado em: 1/4/2003 11:49