Emendas ao Código Civil
Prof. Miguel Reale
Durante o período da vacatio legis, que se estendeu de 10 de janeiro de 2002 a 10 do corrente mês, foram apresentadas várias emendas à Lei n.º 10.406 que instituiu o novo Código Civil, mas sobre elas não se manifestou o Congresso Nacional.
É que houve engano na apresentação das propostas, as quais não se limitaram a correções inadiáveis, ou mais urgentes, como é próprio da vacatio legis, estendendo-se a questões de fundo que não podem deixar de ser objeto de mais longa apreciação.
Nesse ponto, o ilustre deputado Ricardo Fiuza, que tanto se empenhara na aprovação do projeto, se adiantou, data venia, apresentando nada menos de 183 emendas, algumas sobre pontos substanciais que demandam demorado estudo.
É claro que o Código aprovado não constitui obra perfeita, isenta de erros ou de lacunas, mas, em se tratando de extensa unidade sistemática, tudo aconselha a submetê-lo à experiência, antes de se pretender alterar-lhe os principais mandamentos. Não tem sentido, por exemplo, que se queira incontinenti mudar artigos que foram objeto de cuidadoso estudo ao longo de 27 anos de tramitação, como é o caso do dispositivo que estabelece os requisitos da formação da pessoa natural, pretendendo-se que, além da concepção do ser humano, se faça referência ao “embrião” dela resultante.
Por outro lado, apresentar como inatos os direitos da personalidade, em superada compreensão do Direito Natural, em conflito com a experiência histórica da qual eles resultam; ou dizer que os direitos da personalidade não podem ser “desapropriados” (sic) são propostas que devem ser consideradas impróprias ou inadmissíveis à luz da Ciência do Direito contemporânea.
Uma das emendas a meu ver criticável é a que pretende alterar o art. 1.053, a fim de que a sociedade limitada passe a ser regida, nas omissões do respectivo capítulo, pelas normas da sociedade anônima, enquanto está prevista a aplicação “das normas da sociedade simples”, podendo, porém, o contrato social estabelecer a regência supletiva pelas normas da sociedade anônima, conforme parágrafo único do referido preceito.
Trata-se de questão de grande relevância, pois as sociedades por quotas de responsabilidade limitada têm o mais amplo espectro, indo desde inúmeras microempresas, ou de empresas de pequeno porte, até as poderosas sociedades que regem, às vezes, toda uma rede de grandes sociedades anônimas, sendo manifestamente inaplicáveis àquelas as disposições pertinentes a estas.
Cabe salientar que de início inexistia o citado parágrafo único do art.
1.053, de maneira que todas as omissões eram regidas pela “sociedade simples”, o que me pareceu inadequado, propondo ao saudoso senador Josaphat Marinho, relator geral na matéria no Senado Federal, a faculdade de ser estabelecida no contrato social a preferência pelas regras relativas às sociedades anônimas.
Com essa proposta, deu-se um tratamento plural à questão, atendendo à diversidade das entidades que compõem o quadro das sociedades limitadas. Eis como justificava eu a emenda aprovada pela Câmara Alta: “Foi bem recebida a idéia de dar ampla disciplina normativa à sociedade limitada, a qual, com o advento da atual lei sobre as sociedades anônimas, além de sua destinação anterior, passou a atender a empresas que, por sua natureza ou configuração econômica, não se ajustam ao tipo das sociedades por ações, inclusive pelos custos administrativos que estas implicam. Em princípio, deve ser preservado o enquadramento da sociedade limitada entre as sociedades de pessoas, mas tem sido observado com razão que deve ser ressalvado aos sócios quotistas o direito de prever, no contrato, a regência supletiva da entidade pelos preceitos da sociedade anônima, dando-se, também, nesse ponto, preferência aos modelos abertos que constituem uma das diretrizes que nortearam a elaboração do Projeto de Código Civil.”
Outra emenda que envolve imensos interesses diz respeito ao @ 1.º do Art.
1.361 que está assim redigido: “Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, OU, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de Registro.”
Pois bem, pretende-se nada mais nada menos que a substituição da conjunção OU por E, para passar a ser exigido também o registro do licenciamento do veículo no cartório de Registro de Títulos e Documentos, para gáudio de seus serventuários…
Essa emenda não tem a menor razão de ser, representando a revogação perniciosa do Art. 120 do Código Brasileiro de Trânsito, Lei n.º 9.503/97, que tem a seguinte redação: “Todo veículo automotor, elétrico, articulado, reboque ou semi-reboque, deve ser registrado perante o órgão executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal, no Município de domicílio ou residência de seu proprietário, na forma da lei.”
Para tal fim, o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) tem competência para baixar resoluções, regendo a matéria, como a de n.º 772/93 que prevê cadastro de veículos e disciplina a alienação fiduciária em garantia. Esse sistema, em aplicação há vários anos, é de operabilidade exemplar, nada justificando o registro complementar proposto, atendendo a inaceitável reivindicação dos serventuários com descabida invocação de inconstitucionalidade com base no Art. 236 da Carta Magna, que rege os serviços notariais de caráter privado.
Por esses dois exemplos se pode ver com que cuidado devem ser examinadas as emendas já propostas por vários juristas, magistrados e advogados, merecedoras por certo da maior atenção, pois o novo Código Civil pode ser sempre aperfeiçoado, como se deu com o de 1916, que foi emendado em 1919.
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Atualizado em: 1/4/2003 11:49
Miguel Reale
Jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras, sócio do escritório Reale Advogados Associados