A reserva legal e os crimes dos arts. 359  L e M do Código Penal   Migalhas
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A reserva legal e os crimes dos arts. 359- L e M do Código Penal – Migalhas

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Por meio da lei 14.197/21, foram criados os tipos penais de Abolição violenta do Estado Democrático de Direito e Golpe de Estado, respectivamente incorporados ao texto do CP por meio dos novos arts. 359-L e 359-M. Referida lei especial, inclusive, revogou a lei 7.170/83, a tão questionada lei de segurança nacional, que por muito foi tida como não recepcionada pela CF/88 ante a flagrante incompatibilidade de seu conteúdo com o atual texto constitucional.

Pois bem: o art. 5º, inciso XXXIX, da CF/88, assegurou aos indivíduos, em território brasileiro, que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Referido preceito constitucional também consta na redação do CP, e pode ser encontrado no art. 1º do referido código.

Tal princípio de direito – legalidade estrita do Direito Penal ou reserva legal penal – significa que não pode haver crime sem uma lei anterior que o defina, nem a correspondente pena sem a prévia previsão legal; no caso do Brasil, aprovação após norma discutida e deliberada pelo Congresso Nacional, com a consequente sanção presidencial, na forma do art. 22, inciso I; art. 48; e art. 84, inciso IV, todos da CF/88.

Ademais, o princípio em comento garante que ninguém será punido por um ato que não tenha sido considerado crime no momento da prática do ato, assim como impede a aplicação de leis penais retroativas, à exceção das leis penais benéficas, que ou melhoram a situação de um já condenado, ou então descriminalizam condutas dantes previstas como crime. Em resumo, tal princípio é uma das garantias constitucionais mais importantes para proteger os indivíduos contra os abusos do Estado e de seus agentes mais ousados.

O princípio da legalidade estrita ou reserva legal do Direito Penal de desdobra em subprincípios. Dentre eles, destaco dois dos que considero mais relevantes para a presente abordagem: o da lex scripta e o da taxatividade ou da determinação.

Tais subprincípios significam o seguinte:

  • Lex scripta: A lei penal deve ser escrita, emanada de órgão competente e publicada oficialmente, excluída, portanto, a possibilidade de estabelecimento de crimes com base em costumes, princípios gerais de direito, analogias ou fontes não escritas; e
  • Taxatividade/determinação: A lei penal deve ser clara, precisa e definida, de modo a evitar qualquer margem para interpretações abusivas ou mesmo ampliativas; em suma, os elementos que compõe a redação de um tipo penal devem ser expostos de forma clara e taxativa, com a descrição precisa de verbos de ação – admitida a hipótese de prática o crime por omissão – e dos demais elementos normativos.
  • Com apoio em tais subprincípios, surge a seguinte indagação: os delitos trazidos à legislação brasileira penal pela lei 14.197/21, contemplados agora no/pelo CP via arts. 359-L e M, seriam constitucionais? A resposta não é fácil, porém, de forma objetiva é possível abordar alguns elementos que parecem direcionar à conclusão pela “imprecisão” redacional dos mesmos. Vejamos abaixo.

    Eis as redações legais dos mencionados delitos:

    Abolição violenta do Estado Democrático de Direito    

    Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:       

    Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.

    Golpe de Estado 

    Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído:

    Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.

    Como se pode perceber, os delitos previstos são puníveis na forma “tentada”, até porque seria impossível puni-los se consumados, na medida em que na sequência das práticas teríamos um Estado de exceção e, certamente, as instituições democráticas competentes não funcionariam dentro da normalidade constitucional esperada para apurar fatos e punir eventuais responsáveis. Contudo, o foco aqui neste texto são as duas redações dos delitos, e se elas estão 100% em harmonia ao princípio da legalidade estrita ou reserva legal do Direito Penal.

    Para que se possa, inclusive, compreender a prática de um crime, se consumado, tentado ou não punível, mister se faz conhecer o caminho para que se chegue até uma prática criminosa, a saber:

  • Cogitação;
  • Atos preparatórios;
  • Início da execução; e
  • Meta atingida.
  • Um delito “perfeito”, assim digamos, seja material, formal ou de mera conduta, supera todas as etapas do caminho de um crime (iter criminis). Quanto à forma tentada, é importante destacar que se trata da interrupção da prática criminosa por circunstâncias alheias ao agente praticante do delito, e que pela legislação penal acaba sendo punida com pena reduzida em atenção às penas previstas em abstrato na legislação, mais especificamente para o crime cuja consumação acabou sendo interrompida. Vejamos na lei (CP):

    Art. 14 – Diz-se o crime: 

    Crime consumado 

    I – consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal; 

    Tentativa

    II – tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.

    Pena de tentativa 

    Parágrafo único – Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços.

    Conforme o art. 14, inciso II, do CP, o crime tentado, que se trata do crime não consumado em razão de circunstâncias alheias à vontade de seu praticante, é punido “com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços”. Percebe-se, portanto, que a penalização pela tentativa decorre da não consumação de um delito específico, ou seja, por si só prever um tipo criminal de “tentar algo” não parece ser a melhor técnica redacional para tipificar crimes na legislação brasileira, muito embora para os delitos ora tratados apenas se consiga punir a tentativa, não a consumação, a qual romperia com o Estado Democrático de Direito.

    A tentativa se trata, a meu ver e como dito acima, de uma interrupção à consumação de um determinado crime, que possui verbo de ação específico e outros elementos previamente determinados, portanto não me parece muito técnico redigir tipos penais com o verbo “tentar”, embora, repute eu, estejamos a tratar de delitos puníveis efetivamente apenas sob a forma tentada.

    Vale dizer, por oportuno, há evidências na legislação sobre não ser a tentativa uma espécie de ação punível isoladamente, e tanto assim o é que o art.4º da lei de contravenções penais (decreto-lei 3.688/41) afirma “Não é punível a tentativa”. Aqui, por razões óbvias até, pois são condutas de menor potencial ofensivo, porém me parece que há indício de que a tentativa, por si só, não deve configurar crime, ao menos como regra.

    Digamos, portanto, que os delitos em apreço possam flexibilizar a máxima de não previsão de ações apenas tentadas, haja vista a eficácia e efetividade da punição apenas na forma tentada, mas isso, como demonstrarei mais a frente, demanda observância a outro direito fundamental previsto na CF/88.

    Desde já, afirmo que o bem jurídico tutelado pela norma é nobilíssimo, e sem ele não há vida e ordem institucional e social, qual seja: o Estado Democrático de Direito. E não há dúvidas quanto à necessidade sua proteção jurídico-penal, porém, me parece que o modo e os limites de proteção a tal bem jurídico devam ser feitos e observados na forma do inciso XLIV do art. 5º da CF/88, que assim prevê:

    Art. 5º. (…)

    XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;

    O ataque ao Estado Democrático de Direito, do prisma penal, deveria ser tutelado sob o seguinte molde: punição à ação de grupos armados civis ou militares que visem atacar a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito. Bem observando as redações legais dos arts. 359-L e M do CP, na forma da lei 14.197/21, temos que:

  • Toda e qualquer ação supostamente violenta ou ameaçadora ao Estado Democrático de Direito, seja de grupos armados civil ou militares, seja de indivíduos reunidos momentaneamente, poderá ser enquadrada, por exemplo, no art. 359-L; e
  • Toda em qualquer ação supostamente violenta ou ameaçadora à ordem constitucional e ao Estado Democrático de Direito, seja de grupos armados civil ou militares, seja de indivíduos reunidos momentaneamente, que atente contra o um governo eleito, poderá ser enquadrada, por exemplo, no art. 359-M.
  • O que se percebe, portanto, é que as condutas previstas nos arts. 359-L e M são por demais ampliativas, e não consideram as limitações estabelecidas pelo inciso XLIV da CF/88, para além de estipular punições por tentativas, ainda que por exceção possa se admitir tal previsão, o que no máximo poderia ser levado a efeito se redigidos tais dispositivos observadas as mencionadas limitações previstas no inciso XLIV do art. 5º da CF/88 (insisto e repito).

    Para as demais ações violentas ou ameaçadoras, a exemplo de ações de depredação ou de manifestações com “quebra-quebra”, e que fujam dos limites previstos pelo inciso XLIV do art. 5º da CF/88, há delitos outros previstos na ordem jurídica penal, e que observam o princípio da especialidade das condutas, que em regra determina “um tipo de crime para cada conduta praticada”. Vivemos, por óbvio, num Estado organizado e que há de observar, inclusive, os preceitos do Direito Penal mínimo e como última ratio para punir condutas e que, portanto, para assim proceder há de seguir estritamente balizas postas pela própria ordem jurídica vigente.

    Assim sendo, os tipos penais contemplados pelos arts. 359-L e M me parecem não ter observado a contento a técnica redacional exigida pelos subprincípios da lex scripta  e da taxatividade/determinação do tipo penal. Isso que digo, reafirmo, não significa que atos contra o Estado Democrático de Direito e a ordem constitucional não devam constituir crimes, até porque a própria CF assim o exige (inciso XLIV do art. 5º); porém, exige-se do próprio Estado que redija a contento e tecnicamente tais delitos, com previsões claras de condutas e de resultados esperados, e no caso desses delitos nos limites das exigências específicas contidas na CF (torno a repetir), a exemplo de previsão de autoria própria e contemplação do dolo específico.

    Em conclusão, entendo que referidos tipos merecem reformulação pelo legislador. Ao que me parece, o Congresso Nacional e o próprio então presidente da república, em 2021, não se atentaram para tais balizas científicas. Porém, ainda está em tempo de corrigir. Vale lembrar que o Estado brasileiro não abraça o direito penal do inimigo; pelo contrário, o Direito Penal é a última medida para punir e remediar anomalias sociais, logo, se utilizado, há de o ser com base na melhor e mais adequada geometria jurídica.

    Alessandro Ajouz

    Alessandro Ajouz

    Advogado Criminalista.

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