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Introdução
A responsabilidade do Estado por danos causados por seus agentes é tema de constante discussão no Direito Administrativo. Este estudo examina como a doutrina, jurisprudência e uma atuação advocatícia diligente se combinaram para garantir uma decisão judicial favorável em um caso emblemático de erro médico cometido em uma unidade de saúde pública.
Neste contexto, é fundamental compreender a evolução da responsabilidade civil do Estado, desde a teoria da irresponsabilidade até a atual teoria do risco administrativo, consagrada no ordenamento jurídico brasileiro. A súmula 341 do STF, que estabelece a presunção de culpa do empregador ou comitente por ato culposo do empregado ou preposto, também é relevante para a análise do caso em questão.
Como ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro1: “A responsabilidade extracontratual do Estado corresponde à obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis aos agentes públicos”.
Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello2 complementa: “A responsabilidade objetiva do Estado pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causem a terceiros, está consagrada no art. 37, § 6º, da Constituição Federal. Essa responsabilidade é denominada ‘objetiva’ precisamente por prescindir da apreciação dos elementos subjetivos (culpa ou dolo); basta, para caracterizá-la, a ocorrência do dano e que este seja causalmente vinculado a um comportamento comissivo ou omissivo do Estado.”
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Relatório do caso
No dia 18/10/17, uma paciente internada em UTI vinculada a órgão público faleceu após a interrupção indevida de sua nebulização de oxigênio para realização de banho. A conduta, contrária ao estabelecido em seu prontuário, foi considerada negligente. O caso foi formalizado em B.O. – Boletim de Ocorrência 7897/17 e corroborado por depoimentos:
- Depoimento do enfermeiro-chefe: “O prontuário da paciente estabelecia que ela não poderia deixar o leito, nem tampouco ficar sem nebulização.”
- Depoimento do médico responsável: “Ainda que o estado de saúde da vítima fosse crítico, tal manobra irregular pode ter acelerado sua morte.”
- Depoimento da enfermeira orientadora: “Retirei a paciente do leito para dar banho, e, logo após, ela apresentou ‘cianose labial’, quadro que evoluiu para óbito.”
Esses depoimentos foram determinantes para sustentar o nexo de causalidade entre a conduta negligente e o óbito, reforçando a tese apresentada pelos autores.
A análise deste caso se alinha com o entendimento do STJ no REsp 1.184.932/PR, que estabelece que a responsabilidade civil do hospital é objetiva quanto à atividade de seu profissional plantonista, sendo do estabelecimento hospitalar o dever de zelar pela guarda do paciente.
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A importância do acompanhamento jurídico
A presença de um advogado desde a lavratura do B.O. foi essencial para garantir a coleta e preservação das provas necessárias. O caso destaca três eixos principais da atuação jurídica:
Neste contexto, é relevante mencionar o Tema 940 do STJ, que estabelece que a responsabilidade civil do médico por erro na prestação de serviços é subjetiva, mas a do hospital é objetiva, respondendo pelos atos de seus prepostos.
Ademais, o STJ3 tem reiterado que “a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de Direito Público e das pessoas jurídicas de Direito Privado prestadoras de serviço público baseia-se no risco administrativo, sendo objetiva. Assim, para que haja a responsabilização, basta que se demonstre o nexo causal entre o fato lesivo (comissivo ou omissivo) e o dano”.
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O papel do assistente técnico
O assistente técnico contratado elaborou um laudo detalhado, registrado entre as fls. 606-614 dos autos4, que destacou:
- Imprudência e negligência: A retirada da nebulização violou as recomendações do prontuário;
- Nexo causal: O óbito foi diretamente relacionado à suspensão do oxigênio durante o procedimento.
Apesar da robustez do laudo, foi a articulação com os depoimentos testemunhais que fortaleceu a conclusão de negligência por parte do órgão de saúde.
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A decisão judicial
Fundamentada no art. 37, §6º da CF/88, a sentença reconheceu a responsabilidade objetiva do órgão público, fixando indenização por danos morais em R$ 100.000,00, corrigido para R$ 187.884,65. O juízo baseou-se em precedentes como:
- RE 136861: Estabelece os parâmetros para aplicação da teoria do risco administrativo;
- TJ/SP, apelação cível 0006785-63.2008.8.26.0562: Define critérios para valoração de danos morais.
Além disso, a decisão está em consonância com o Tema 362 do STF, que reafirma a responsabilidade objetiva do Estado por morte de detento, aplicando-se, por analogia, aos casos de morte de paciente sob cuidados do Estado.
Como observa Sérgio Cavalieri Filho5: “Na fixação do quantum debeatur da indenização, mormente tratando-se de lucro cessante e dano moral, deve o juiz ter em mente o princípio de que o dano não pode ser fonte de lucro. A indenização, não há dúvida, deve ser suficiente para reparar o dano, o mais completamente possível, e nada mais.”
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Parâmetros de correção e juros
Os valores indenizatórios foram corrigidos com base em:
Essa abordagem assegura uma reparação integral, ajustando o valor indenizatório de forma a refletir a atualização monetária e o impacto da demora no cumprimento.
É relevante mencionar o Tema 810 do STJ, que define os índices de correção monetária e juros de mora a serem aplicados nas condenações impostas à Fazenda Pública.
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Cumprimento provisório da sentença
O cumprimento provisório, deferido sem caução nos termos do art. 520, I, do CPC, possibilita a execução imediata da decisão judicial, mesmo pendente o trânsito em julgado. Essa medida visa resguardar os direitos dos autores, especialmente em razão da jurisprudência consolidada que embasou a sentença.
A decisão pelo cumprimento provisório está em harmonia com o Tema 743 do STJ, que estabelece a possibilidade de penhora de verbas públicas para pagamento de prestação alimentícia, aplicando-se, por analogia, aos casos de danos morais decorrentes de erro médico.
Fredie Didier Jr6. ressalta a importância deste instituto: “O cumprimento provisório da sentença impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo é um importante instrumento de efetivação do direito fundamental à tutela executiva, pois permite a satisfação do direito reconhecido judicialmente antes do trânsito em julgado da decisão.”
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Conclusão
O caso analisado evidencia a importância de uma atuação advocatícia diligente, aliada à articulação entre provas técnicas e testemunhais. A decisão judicial não apenas reconheceu a negligência do órgão público, mas também reafirmou a relevância de um processo bem instruído para a efetivação da justiça.
Este estudo demonstra a evolução da jurisprudência brasileira no tocante à responsabilidade civil do Estado, especialmente em casos de erro médico. A aplicação da teoria do risco administrativo, aliada aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção à saúde, tem permitido uma tutela mais efetiva dos direitos dos cidadãos frente aos danos causados pela Administração Pública.
É importante ressaltar que a indenização inicialmente fixada em R$ 100.000,00 foi posteriormente majorada e atualizada, perfazendo o montante de R$ 187.884,65 a título de danos morais sofridos pelos autores da ação. Esta atualização reflete o compromisso do Judiciário em garantir uma reparação justa e adequada, considerando os fatores de correção monetária e juros aplicáveis.
Como bem pondera Hely Lopes Meirelles7: “O essencial é que a administração recomponha o patrimônio lesado, observando-se os princípios da responsabilidade objetiva e da reparação integral”.
Esta perspectiva reforça a importância de decisões como a analisada neste estudo, que não apenas reparam o dano individual, mas também contribuem para o aprimoramento do serviço público de saúde como um todo.
Esta decisão, além de seu impacto imediato na reparação do dano às vítimas, pode ter consequências de longo prazo para a gestão da saúde pública. Ao reafirmar a responsabilidade objetiva do Estado em casos de erro médico, o Judiciário não apenas garante a justa compensação, mas também incentiva uma cultura de maior cuidado e responsabilidade na prestação de serviços de saúde. Isso pode levar a investimentos em treinamento, melhoria de protocolos e sistemas de segurança, beneficiando, em última análise, toda a sociedade.
É importante ressaltar que, embora a responsabilização civil do Estado seja um mecanismo essencial para a reparação de danos, a prevenção de erros médicos deve ser uma prioridade. Nesse sentido, o jurista Rui Stoco8 argumenta: “A melhor forma de evitar a responsabilização é através da prevenção, com a adoção de medidas que impeçam a ocorrência do dano”.Assim, decisões como esta devem não apenas compensar as vítimas, mas também incentivar políticas públicas voltadas para a prevenção de erros e à melhoria contínua dos serviços de saúde.
Por fim, é crucial destacar que casos como este reforçam a necessidade de aprimoramento constante dos protocolos de segurança e qualidade no atendimento em unidades de saúde públicas. A responsabilização do Estado, além de garantir a justa reparação às vítimas, deve servir como estímulo para a melhoria dos serviços prestados à população, em consonância com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do direito à saúde.
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1 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 828.
2 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 1051.
3 REsp 1.666.093/RJ, rel. min. Herman Benjamin, Segunda turma, julgado em 7/12/17, DJe 19/12/17.
4 Processo 1003102-43.2018.8.26.0564.
5 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 151.
6 DIDIER JR., Fredie et al. Curso de Direito Processual Civil: Execução. 7ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 417.
7 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 43ª ed. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 780.
8 STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 1450.
César Henrique Policastro Chassereaux
Advogado e sócio da Ferreira Chassereaux Advogados. Diretor Jurídico da APAE Santo André (2025/2026). Conselheiro Jurídico do Rotary Santo André – Distrito 4420 (2024/2025). CEO do Grupo Chassereaux.
João Victor de Lima Souza
Advogado. Formado pela Universidade São Judas Tadeu.