O avanço da desjudicialização dos procedimentos no Direito brasileiro   Migalhas
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O avanço da desjudicialização dos procedimentos no Direito brasileiro: Uma alternativa para o acesso à ordem jurídica justa?

Uma discussão acerca da desjudicialização dos procedimentos no Direito brasileiro.

Ao longo dos anos, a efetividade da tutela jurisdicional passou a ser objeto de reflexão mais apurada, não apenas por parte da comunidade jurídica, mas também de diversos setores da sociedade civil, bem como do Poder Legislativo, que encampou inovações normativas voltadas a descongestionar o Poder Judiciário das inúmeras demandas pendentes de julgamento.

Um breve panorama histórico é de fundamental importância para compreendermos, com a maior acuidade possível, a evolução, no Direito brasileiro, do processo de desjudicialização, que possibilitou a transferência da resolução de determinados problemas jurídicos para o âmbito extrajudicial, já que, até então, grande parte das demandas era concentrada na via jurisdicional.

A ascensão da desjudicialização dos procedimentos ganhou ênfase com o advento da EC número 45 de 2004, conhecida como reforma do Poder Judiciário, que destacou a atuação das serventias extrajudiciais e foi responsável pela criação do CNJ.

Atento às demandas sociais, o legislador constituído, no ano de 2007, editou a lei Federal 11.441, que alterou o CPC/73, possibilitando a realização de inventário, partilha e divórcio no âmbito extrajudicial. Essa medida representou um avanço significativo na desjudicialização dos procedimentos, configurando uma verdadeira mudança de paradigma.

É evidente que o objetivo do legislador, atendendo aos reclamos da sociedade quanto ao gargalo da morosidade do Poder Judiciário, foi garantir uma maior abertura para a resolução de problemas que, até então, aguardavam uma decisão judicial, acarretando a paralisação de demandas que poderiam ser resolvidas fora da esfera judicial.

Antes da lei Federal que possibilitou o inventário, a partilha e o divórcio no plano extrajudicial, algumas normas já permitiam a resolução de determinadas questões fora do Poder Judiciário, ainda que timidamente. Um exemplo é o decreto-lei 70/66, que facultava ao credor a escolha pela execução hipotecária no âmbito cartorário.

Todavia, a mudança significativa na percepção sobre as formas ou instrumentos adequados para resolver questões fora do âmbito judicial ocorreu com a reforma constitucional (EC 45 de 2004) e com a edição da lei Federal 11.441 de 2007, que representaram um marco não apenas na evolução do pensamento jurídico brasileiro, mas também na relevância conferida à atuação das serventias extrajudiciais.

A compreensão de que o Poder Judiciário não pode ser a única forma de resolução de conflitos não é recente. Vários estudos realizados em outros países constataram a necessidade de permitir que determinadas questões fossem resolvidas por outros atores, que poderiam oferecer uma prestação célere e justa.

Nos Estados Unidos, na década de 1970, estudos realizados na Universidade de Harvard pelo professor Frank Sander apresentaram as ideias iniciais do que seria denominado sistema de justiça multiportas. Esse sistema parte da constatação de que o Poder Judiciário não poderia solucionar, em tempo razoável, todas as demandas levadas pelos jurisdicionados, ressaltando a necessidade de meios alternativos para garantir a resolução dos conflitos.

No conceito de “portas”, a doutrina especializada pontua que não há um único meio para resolver um conflito, mas diversos caminhos que podem ser utilizados para proporcionar uma solução célere e justa, sem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário.

Consoante Didier Júnior e Fernandez (2024, p. 42), “Porta, aqui, tem sentido figurado: por onde se entra, por onde se sai ou por onde se vai (caminho). E note: nem sempre a porta de entrada é a mesma da saída (as portas se entrelaçam em nosso sistema), pois uma porta pode dar acesso a outras tantas, assim como há situações em que não há propriamente um lugar para entrar, mas apenas um caminho a seguir, que será construído, como costuma ocorrer, durante a própria caminhada.”

Nesta senda, percebe-se que há diversos caminhos possíveis e não apenas o do Poder Judiciário. Isso fomenta a ampliação dessas “portas”, que podem ser utilizadas para a entrega rápida, simples e justa de uma prestação que solucione o problema jurídico do jurisdicionado.

Recentemente, o CNJ, que representa, conforme apontam os professores Fredie Didier Júnior e Leandro Fernandez, um órgão de controle ou uma “Agência Reguladora” do Sistema de Justiça, avançou na possibilidade de manejo do inventário e partilha extrajudiciais.

O CNJ, visando garantir essa simplificação procedimental, alinhou-se ao Parlamento brasileiro, que editou mudanças legislativas inovadoras, como a lei do sistema eletrônico de registros públicos e a lei das garantias. Aquele órgão conferiu a possibilidade de realização de inventários e partilhas extrajudiciais, inclusive com a presença de menores e a existência de testamento, conforme disposto na resolução 571 de 2024.

A referida resolução possibilita a realização de inventários extrajudiciais envolvendo herdeiros menores ou incapazes, desde que sejam cumpridos os requisitos legais e emitido parecer favorável do Ministério Público, fiscal da ordem jurídica.

Essa medida representou um avanço significativo na desjudicialização dos procedimentos, permitindo, inclusive, que se realizem, no âmbito das serventias extrajudiciais, inventários com a presença de herdeiros menores ou incapazes, algo inconcebível há alguns anos.

Dessa forma, é indubitável que o sistema de justiça brasileiro passa por um período de ressignificação, em que a desjudicialização dos procedimentos se mostra como uma alternativa eficaz para a resolução de problemas jurídicos, antes monopolizada pelo Poder Judiciário, contribuindo para a celeridade e a presteza na entrega da prestação jurisdicional.

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1 BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 10 ago. 2024.

2 BRASIL. Lei nº. 13.105, de 16 de março de 2015. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 17 de maço de 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 10 ago. 2024.

3 BRASIL. Decreto-Lei nº 70, de 21 de novembro de 1966. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0070-66.htm. Acesso em: 09 ago. 2021.

4 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 571, de 26 de agosto de 2024. Altera a Resolução CNJ nº 35/2007, que disciplina a lavratura dos atos notariais relacionados a inventário, partilha, separação consensual, divórcio consensual e extinção consensual de união estável por via administrativa. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 30 ago. 2024. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5705. Acesso em: 29 jan. 2025.

5 DIDIER JUNIOR, Fredie, Leandro FERNANDEZ. Introdução à Justiça Multiportas. 1. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2024.

Carlos Afonso Rocha Quixadá Pereira

Carlos Afonso Rocha Quixadá Pereira

Advogado com atuação em Direito Imobiliário, Sucessões e Partilha de Bens. Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Pós-graduado em Direito Imobiliário pela EPD.

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